O último diário após o último filme justamente sobre um diário: I diari di Angela – Noi due cineasti (2018), de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi. Guardei a madrugada no bolso e escapei da sessão noturna do elogiado Her Smell, de Alex Ross Perry, com a estrela Elisabeth Moss. O jornada de autodestruição de uma artista punk fica outro momento. A minha viagem acabou com essa imagem, o flagrante carinhoso da Angela Ricci Lucchi colhendo os tomates em seus últimos bons dias de vida.
Após a morte de Angela em 2018, Gianikian resgata o diário que ela compôs cuidadosamente com palavras e desenhos durante todos os dias de uma vida. Creio que o filme abre pelo menos duas grandes veredas de prazer incondicional.
A primeira é poder descobrir os movimentos criativos dos realizadores de Do Pólo ao Equador e País Bárbaro em seu aspecto mais íntimo: as viagens (Armênia, Turquia, Rússia, Irã, Bósnia) em busca das histórias e dos filmes perdidos, o trabalho com as películas mortas, as retrospectivas tardias e as reflexões sobre o grande tema – a perplexidade diante da guerra.
Nós envelheceremos juntos: o outro prazer, para além de qualquer conhecimento ou até mesmo do interesse naquele cinema singularmente político, é o de acompanhar o cotidiano de duas pessoas que viveram, trabalharam e envelheceram lado a lado. E então me parece que há um outro diário não dito neste filme, aquele que Gianikian também registrou com a câmera durante toda uma vida.
Nós dois cineastas: a comunhão de Angela (em textos) e de Yervant (em imagens) em um mesmo episódio narrado. Palavra e imagem, outrora não reconciliáveis, juntos outra vez neste filme sobre muitas coisas, mas essencialmente sobre essa arte perdida do século vinte, o casamento – inclusive no cinema, ao menos desde os modernos sessentistas que impuseram o signo da separação: das imagens e dos sons, dos homens e das mulheres.
A primeira noite do Bafici foi da eletricidade contagiante da Barbara Rubin. A última é da transgressão doce da Angela Ricci Lucchi. Fechou bem assim.
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Veio a lembrança de outra noite e de outro casal inspirador, Aaron Cutler e Mariana Shellard, da Mutual Films. Em 2018, após o aterrorizante mês de outubro, houve a incrível sessão Uma questão de aparência, programada por eles no Instituto Moreira Salles. Em cartaz: Vinte dias sem Guerra, do russo Aleksey German, e País Bárbaro, de Ricci Lucchi e Gianikian.
Sou um grande entusiasta das sessões duplas. Como diriam o Godard, a Xerazade e o Llinás: alguma coisa acontece quando trocamos o “era uma vez” pelo “eram duas vezes”.
Gosto, também, da ideia erótica do “uma sobre a outra”.
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Eram duas vezes: na véspera do Domingo de Ramos, mais uma história de repetição e diferença.
Na saída do Cine Gaumont, logo após a exibição de Hombres de Piel Dura, novo filme do argentino José Campusano sobre as discórdias e os dramas da sexualidade na vida campeira (“o meio rural é um afrodisíaco que não para”), um coroinha me entrega um folheto sobre a Semana Santa e um ramo. Poucas horas depois, o remake. Na saída da Sala Lugones, após uma sessão de curtas que apresentou novidades da portuguesa Susana de Sousa Dias (Fordlandia Malaise) e do norte-americano Kevin Jerome Everson (Black Bus Stop) sobre território e história, uma mulher me dá um encarte de um curso promovido pela Fundación Centro Psicanalítico Argentino. No lugar de Jesus Cristo: Michel Houellebecq!
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Não vi tantos filmes contemporâneos. Os grande culpados, não há trens nas dúvidas, foram as mostras de Paulo Rocha, Muriel Box e Friedl vom Gröller. Já viajei com a certeza de que as grandes contemporaneidades estariam mesmo na Sala Lugones.
Entre as novidades mais intrigantes, um pequeno filme pontuado por estranhamentos diversos que explicita, num primeiro momento, os entreveros e os encardidos do ato de pesquisar: MS Slavic 7, dos canadenses Sofia Bohdanowicz e Deragh Campbell.
Não foi uma surpresa. A pequena mas já admirável filmografia da jovem Bohdanowicz foi um dos destaques, com várias sessões comentadas, da edição vinte do festival.
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Levo na mala algumas novas antiguidades argentinas encontradas em uma lojinha de DVDs – “para colecionadores” – na Corrientes: Los 7 Locos, de Leopoldo Torre Nilsson, inspirado na obra de Roberto Arlt; Tiro de Gracia, retrato da contracultura portenha do fim dos anos 1960 de Ricardo Becher; e Los Traidores, um marco político de Raymundo Gleyzer, cineasta desaparecido pela Ditadura argentina nos anos 1970.
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Levo de Buenos Aires, também, o lema da menina que conferia os ingressos na Sala Lugones: cinematecas e cineclubes contra netflixes e multiplexes!
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Primeiro o mar.
Agora a terra.