Diário do Bafici (8): A última imagem

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O último diário após o último filme justamente sobre um diário: I diari di Angela – Noi due cineasti (2018), de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi. Guardei a madrugada no bolso e escapei da sessão noturna do elogiado Her Smell, de Alex Ross Perry, com a estrela Elisabeth Moss. O jornada de autodestruição de uma artista punk fica outro momento. A minha viagem acabou com essa imagem, o flagrante carinhoso da Angela Ricci Lucchi colhendo os tomates em seus últimos bons dias de vida.  

Após a morte de Angela em 2018, Gianikian resgata o diário que ela compôs cuidadosamente com palavras e desenhos durante todos os dias de uma vida. Creio que o filme abre pelo menos duas grandes veredas de prazer incondicional.

A primeira é poder descobrir os movimentos criativos dos realizadores de Do Pólo ao Equador e País Bárbaro em seu aspecto mais íntimo: as viagens (Armênia, Turquia, Rússia, Irã, Bósnia) em busca das histórias e dos filmes perdidos, o trabalho com as películas mortas, as retrospectivas tardias e as reflexões sobre o grande tema – a perplexidade diante da guerra.

Nós envelheceremos juntos: o outro prazer, para além de qualquer conhecimento ou até mesmo do interesse naquele cinema singularmente político, é o de acompanhar o cotidiano de duas pessoas que viveram, trabalharam e envelheceram lado a lado. E então me parece que há um outro diário não dito neste filme, aquele que Gianikian também registrou com a câmera durante toda uma vida.

Nós dois cineastas: a comunhão de Angela (em textos) e de Yervant (em imagens) em um mesmo episódio narrado. Palavra e imagem, outrora não reconciliáveis, juntos outra vez neste filme sobre muitas coisas, mas essencialmente sobre essa arte perdida do século vinte, o casamento – inclusive no cinema, ao menos desde os modernos sessentistas que impuseram o signo da separação: das imagens e dos sons, dos homens e das mulheres.

A primeira noite do Bafici foi da eletricidade contagiante da Barbara Rubin. A última é da transgressão doce da Angela Ricci Lucchi. Fechou bem assim.

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Veio a lembrança de outra noite e de outro casal inspirador, Aaron Cutler e Mariana Shellard, da Mutual Films. Em 2018, após o aterrorizante mês de outubro, houve a incrível sessão Uma questão de aparência, programada por eles no Instituto Moreira Salles. Em cartaz: Vinte dias sem Guerra, do russo Aleksey German, e País Bárbaro, de Ricci Lucchi e Gianikian.

Sou um grande entusiasta das sessões duplas. Como diriam o Godard, a Xerazade e o Llinás: alguma coisa acontece quando trocamos o “era uma vez” pelo “eram duas vezes”.

Gosto, também, da ideia erótica do “uma sobre a outra”.

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Eram duas vezes: na véspera do Domingo de Ramos, mais uma história de repetição e diferença.

Na saída do Cine Gaumont, logo após a exibição de Hombres de Piel Dura, novo filme do argentino José Campusano sobre as discórdias e os dramas da sexualidade na vida campeira (“o meio rural é um afrodisíaco que não para”), um coroinha me entrega um folheto sobre a Semana Santa e um ramo. Poucas horas depois, o remake. Na saída da Sala Lugones, após uma sessão de curtas que apresentou novidades da portuguesa Susana de Sousa Dias (Fordlandia Malaise) e do norte-americano Kevin Jerome Everson (Black Bus Stop) sobre território e história, uma mulher me dá um encarte de um curso promovido pela Fundación Centro Psicanalítico Argentino. No lugar de Jesus Cristo: Michel Houellebecq!

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Não vi tantos filmes contemporâneos. Os grande culpados, não há trens nas dúvidas, foram as mostras de Paulo Rocha, Muriel Box e Friedl vom Gröller. Já viajei com a certeza de que as grandes contemporaneidades estariam mesmo na Sala Lugones.

Entre as novidades mais intrigantes, um pequeno filme pontuado por estranhamentos diversos que explicita, num primeiro momento, os entreveros e os encardidos do ato de pesquisar: MS Slavic 7, dos canadenses Sofia Bohdanowicz e Deragh Campbell.

Não foi uma surpresa. A pequena mas já admirável filmografia da jovem Bohdanowicz foi um dos destaques, com várias sessões comentadas, da edição vinte do festival.

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Levo na mala algumas novas antiguidades argentinas encontradas em uma lojinha de DVDs – “para colecionadores” – na Corrientes: Los 7 Locos, de Leopoldo Torre Nilsson, inspirado na obra de Roberto Arlt; Tiro de Gracia, retrato da contracultura portenha do fim dos anos 1960 de Ricardo Becher; e Los Traidores, um marco político de Raymundo Gleyzer, cineasta desaparecido pela Ditadura argentina nos anos 1970.

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Levo de Buenos Aires, também, o lema da menina que conferia os ingressos na Sala Lugones: cinematecas e cineclubes contra netflixes e multiplexes!

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Primeiro o mar.

Agora a terra.

 

Diário do Bafici (8): A última imagem

Diário do Bafici (7): Os protagonistas

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Os foguetes de casa dão sinais de vida com a cara de plástico do nosso antigo monarca estampada em cartazes colados nas paredes do trecho mais estreito de uma rua aparentemente kirchnerista, a Rivadavia. Nueva fecha después de un éxito absoluto de ventas: Roberto Carlos. 

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E o ciclo de Muriel Box continuou com mais duas sessões: A Chave Secreta (1959), obra menor que escorrega entre o melodrama e a investigação policial (o único não roteirizado por ela entre os programados, algo a destacar), e uma joia inacreditável: The Passionate Stranger (1957).

A sinopse escrita pelos programadores dá uma ideia da aventura: en esta deconstrucción de la novela sentimental, Muriel Box satiriza la confusión entre ficción y realidad. Un chofer halla un manuscrito de la esposa de su jefe y, convencido de que la historia lo incluye en los deseos reales de la mujer, comienza a recrear las acciones de su personaje.

O cenário bucólico inglês faz o palco para Box colocar em jogo diversos personagens e intenções: um pobre siciliano que precisa de qualquer emprego, uma jovem empregada que tem o coração na mão, um marido paralisado após a visita da poliomielite e uma escritora que usa tudo isso como matéria-prima para a criação. A releitura da história a partir da ficção dá cor ao que era preto e branco e reconfigura todas as relações entre os personagens, colocando pimenta no marasmo cotidiano a partir de uma paixão proibida e de um assassinato premeditado. Mas o filme dá outra volta no parafuso e toma um rumo um tanto quanto quixotesco. No diálogo irreconciliável entre realidade e ficção, surgem questões ainda incendiárias sobre gênero e classe.

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Um intervalo no Bafici para acompanhar uma sessão antológica do Bazofi, a mostra do grande arquivista, cinéfilo e pesquisador Fernando Martín Peña, na sala de cinema do MALBA. O filme? A Epopéia dos Anos de Fogo (1961), obra histórica da diretora russa Yuliya Solntseva em 35mm com uma cópia cheia de marcas da vida.

Fiquei a sessão inteira pensando no êxtase da Juliana Costa, a grande divulgadora das cineastas russas em Porto Alegre, assistindo en fílmico a essa obra-prima antifascista com pequenos lampejos do (sur)realismo socialista típico da diretora. No fim de uma tarde de sexta-feira,  o despertar da Ucrânia mitológica a partir da grande descoberta, “o segredo da universalidade humana”. Um momento glorioso da viagem.

A milonga de guerra soviética foi tão arrebatadora que saí sem rumo do MALBA e arrisquei uma pernada até o Cine Gaumont, onde aconteceria a exibição do novo filme de Martín Rejtman. Foram duas horas andando pela cidade com a cabeça nos redentores céus da Ucrânia que a Yuliya Solntseva filmou.

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Martín Rejtman, o grande trovador do Nuevo Cine Argentino, só precisa de vinte minutos para narrar os fracassos cotidianos de um jovem judeu que entra em depressão após a morte da avó e um rompimento desastrado com a namorada. A duração de Shakti (2018) desconcerta porque intensifica todas as qualidades do diretor, um dos principais contadores de histórias do cinema contemporâneo: os golpes das elipses, as cenas brevíssimas e as pontuais intervenções da narração já conhecidas em filmes como Rapado e Dois Disparos ficam ainda mais assombrosas.

O esporte favorito de Rejtman é encontrar o absurdo em uma classe média portenha neurótica, ensimesmada e tomada por uma apatia incontornável. Mas tem algo a mais neste filme que surge apenas na conclusão. Quem é o real protagonista dessa história? Em galáxias absolutamente distantes, a verdadeira autora dos bolinhos de batata do filme de Martín Rejtman e o Dom Quixote da Sicília do filme de Muriel Box me fizeram pensar sobre protagonistas impossíveis a partir do momento em que os territórios de uma história são delimitados.  

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Fui mordido pelo bicho da semelhança e então fiquei me perguntando se também não há um protagonista escondido em Santiago, Itália (2018), o novo documentário de Nanni Moretti, filme de encerramento do Bafici 2019. Por que o interesse nessa história agora? Ao longo da projeção, a questão vem algumas vezes à cabeça – em uma sequência a impressão é a de que o filme só existe para que Moretti possa dizer na cara de um torturador chileno, um velho desprezível que exige a imparcialidade na entrevista: io non sono imparziale.

Mas há algo mais, é claro. O coração do filme, o título já sugere, é o episódio do refúgio dos perseguidos políticos na Embaixada Italiana, em Santiago, e a consequente fuga para o país europeu. Uma história que já conhecemos, inclusive, em recentes documentários brasileiros como Diário de uma Busca, de Flavia Castro, e Retratos de Identificação, de Anita Leandro.

O filme italiano reconstrói a partir de depoimentos a alegria e o terror chileno nos anos 1970; da sensação dos dias mais felizes das nossas vidas (com a vitória democrática de Allende), da sensação de um socialismo asfixiado por todas as instâncias do poder (auxiliadas pelos Estados Unidos), à sensação de um pânico profundo pós-golpe de estado. Esquiva-se de algumas complexidades, já muito bem investigadas em obras chilenas (os documentários de Patricio Guzmán e Miguel Littin, devidamente entrevistados por Moretti) ou no colosso francês de Chris Marker, O Fundo do Ar é Vermelho. Talvez porque a ideia realmente seja apenas contextualizar a história para um público europeu contemporâneo que a desconhece. Aí começa a aparecer, de fato, o protagonista escondido.

A certeza do real interesse de Moretti nessa história – antiga para os europeus e eternamente contemporânea para os sul-americanos – vem mesmo no último depoimento, quando um dos chilenos radicados em Milão fala sobre as diferenças de um país que recebeu tão bem os refugiados nos anos 1970 e o desastre atual, com um povo completamente obcecado pelo consumo e pelo individualismo. Mais alguns segundos, uma cena musical, e o fim interrompe a história. O protagonista que quase nunca está lá no filme de Nanni Moretti é a Itália contemporânea. Mas há (sempre há! mesmo adormecida, alguma utopia sempre existirá no filmes de Moretti sobre a esquerda) o sonho com esse protagonista impossível, uma Itália acolhedora e sensível diante dos horrores do mundo.

Diário do Bafici (7): Os protagonistas

Diário do Bafici (6): A vanguarda contra-ataca

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Começo o novo diário com o que sobrou de um texto interrompido há dois anos. Fazia parte de outra série de publicações sobre o Bafici. Naquela edição, a dezenove, Nanni Moretti era homenageado e a obra-prima mítica do maestro Fernando Birri, ORG, era exibida em sua versão integral e restaurada. A Vendedora de Fósforos, de Alejo Moguillansky, ganhava o prêmio principal da competição argentina. No MALBA, a exposição do coletivo canadense General Idea apresentava toda uma trajetória de arte e vida concluída com uma das obras mais tristes já vistas neste mundo: Fin de siècle, um autorretrato dos artistas, outrora festivos e desejantes (1960 e 1970) como três focas isoladas em meio a uma imensidão de gelo, em 1994.

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A vanguarda está sempre na mira de todos. No Bafici muitos filmes problematizaram a criação experimental. Io Sono un Autarchico, o primeiro longa de Nanni Moretti, um filme manifesto. Fim dos anos 1970. Outro mundo.
Em A Vendedora de Fósforos, a arte de vanguarda também é problematizada, mas já num sentido de retomada. Qual a relevância política da arte de vanguarda hoje?

Neurose, cinismo (outra geração)
A genialidade de Moretti é saber trabalhar isso numa perspectiva autocrítica.

Uma das coisas ótimas do Bafici é que a resposta pode vir na sessão do dia seguinte.
Quem guardou espaço na grade para ver a projeção histórica da cópia restaurada de ORG, de Fernando Birri, certamente teve contato com um dos mais (…)
O filme foi restaurado pelo Arsenal de Berlim. Até então, a existência da cópia integral com 3 horas de duração era tida como uma lenda.
Só havia a cópia remontada para o lançamento comercial, com 104 minutos. Não dá nem pra imaginar como pode existir um corte comercial desse filme.

Birri levou dez anos para fazer: 1967-1979. Filme colagem, convulsivo, psicodélico, abstrato. Stan Brakhage encontra Carmelo Bene? Questões do período estão todos lá, amor livre, revolução, a própria atuação do cinema (entrevistas com Glauber, Godard) mas tudo fragmentado.

Esgota o período da geração de 68. É o auge.
É natural que a geração de Nanni Moretti tenha um pé atrás. Neurose, cinismo. Outro mundo.

A exposição do MALBA apresenta o trabalho do coletivo canadense General Idea.
Começa com a subversão sexual, a libertação do corpo, a (…), termina com a AIDS, com o isolamento, a morte. 1967-1994

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A ideia do texto era falar sobre esse vai e vem que incomoda e inspira na mesma medida: o ataque à vanguarda e o seu eterno retorno (poderíamos dizer eterna vingança). Também queria identificar algumas questões históricas marcantes que feriram e mataram a geração dos 1960 através das doenças da alma e do corpo. Não sei se o culpado foi o cansaço, a falta de inspiração ou o assalto da melancolia, mas o texto nunca foi adiante.

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Em 2019, as aventuras mais extraordinárias ainda não estiveram na mira de ninguém (em dois anos o tempo já é outro), mas resgato os escombros escritos porque uma das grandes qualidades do Bafici são as retrospectivas de realizadores que não se enquadram mesmo em uma perspectiva mais expandida do cinema contemporâneo que pede passagem nos festivais.

No ano passado – a memória ainda guarda orgulhosa muitas imagens – o mexicano Teo Hernández ganhou uma mostra quase completa, em exibições históricas em Super-8 na Sala Lugones. Agora, na mesma sala e em 16mm, a grande atração são as sessões comentadas da austríaca Friedl vom Gröller – que também assina alguns filmes como Friedl Kubelka, sua alcunha reconhecida na arte da fotografia. Ela foi casada durante anos com Peter Kubelka e compartilha com ele algumas vontades radicais em relação ao cinema: a defesa irrestrita da película, o questionamento do uso do som, o desencorajamento dos subtítulos grudados na imagem. “Confio nelas”.

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As malditas correrias: consegui pegar apenas duas das três sessões que apresentavam uma pequena parte dos mais de 150 filmes curtos que Friedl já produziu. Na primeira noite, marcada pela exibição de Max Turnheim, 40 minutos que registram o tempo passando a partir de serenos retratos filmados, ano a ano, do jovem que dá título ao filme, chamou atenção a transgressora aproximação entre as artes performáticas da psicanálise (ela atuou profissionalmente na área por dez anos) e dos Acionistas Vienenses. Em um filme como Boston Steamer, o desejo performático resulta em uma grande chuva de merda na cara da plateia, em uma das apreensões escatológicas mais inventivas (e belas!) que o cinema já viu e que certamente verá.

O terceiro programa de curtas apresentava uma série quase integralmente dedicada aos rostos. Se algumas obras recontextualizam e/ou tensionam o retrato fotográfico a partir da duração cinematográfica, outros revelam pequenas sugestões narrativas que parecem fragmentos de um filme de espionagem ou daqueles atrevimentos eróticos dos primórdios do cinema. A aventura de Friedl vom Gröller com os rostos não encontra fronteiras e nem limita-se a conceitos rigorosos. Percebe-se uma vontade de pensar cada filme como um novo jogo de regras próprias. O resultado é essencialmente diverso e dialoga com diferentes momentos em que a história do cinema lidou com os rostos: num intervalo de 3 minutos, às vezes saímos de um registro desajeitado que lembra os filmes jornalísticos do início do século para um instantâneo misterioso que recorda os gloriosos crimes que o cinema underground dos anos 1960 cometeu.

“Roubo algo da pessoa, calculo a duração do filme e provoco uma ação espontânea. É um experimento científico”. No fim de tudo, a citação de uma frase de um físico alemão colocou a moldura exata na gloriosa noite de crimes de Friedl vom Gröller: “o espaço de maior entretenimento no mundo é o rosto humano”.

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A vanguarda interrompida: abandonei ainda no início a promissora exibição do contemporâneo espanhol Letters to Paul Morrissey (2018), de Armand Rovira, exibido após o incrível curta de Martín Rejtman, para pegar o último metrô. Em Buenos Aires, eles viram abóbora um pouco antes da meia-noite.

Inspirado por uma provocação de Friedl vom Gröller no fim do primeiro debate, resolvi roubar um rosto pra mim. O acaso colocou na minha frente uma senhora que lia um romance policial da lendária coleção El Séptimo Círculo, organizada por Borges e Bioy Casares. Só peguei o título argentino: “Los toneles de la muerte”. Notei que o tempo entre aquela estação e a outra é basicamente o mesmo dos pequenos rolos em 16mm utilizados pela austríaca. De repente, um acidente: flagrei aquele intervalo luminoso quando os olhos fogem das páginas durante alguns segundos e são tomados por uma vibração indescritível. Alguma coisa aconteceu.

Diário do Bafici (6): A vanguarda contra-ataca

Diário do Bafici (5): Muriel Box

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Outra atração inevitável desta edição do Bafici é a mostra de filmes da diretora Muriel Box, que ainda segue nas sombras da história do cinema, mesmo com as mudanças de paradigmas dos últimos anos. Há poucos meses, a inglesa ganhou uma grande retrospectiva no Festival de San Sebastian, na Espanha, mas suas obras são pouco acessíveis mesmo nos recantos de cinefilia mais fervorosa na internet.

O público na Sala Lugones dividia-se basicamente entre as jovens mulheres com os lenços verdes, provavelmente com ganas de descobrir uma pioneira feminista do cinema, e aquela tradicional terceira idade cinéfila (exatamente os mesmos tipos no mundo inteiro!) com ganas de ver clássicos dos anos 1950 na tela grande.

Creio que todos saíram contentes das sessões, mas se havia algum cinéfilo mais conservador (ou nem tanto) afundado na poltrona, este foi obrigado a ouvir algumas verdades indigestas. Ao menos com os dois primeiros filmes vistos por aqui, Street Corner (1953) e As Sete Mulheres de Minha Vida (1959). Muriel Box escancara seu cinema feminista: as ideias não estão na entrelinhas, escondidas numa trama, ela fez filmes para falar da condição da mulher acima de qualquer coisa.

O que chama atenção, de imediato, é a vontade de ter muitos pontos de vista, muitas perspectivas em histórias fragmentadas sobre temas bem definidos. Box, que também assina os roteiros, não deseja apenas contar uma história, mas dissertar sobre algo. Em Street Corner, o algo é o cotidiano de mulheres ainda no contexto delicado e empobrecido do pós-guerra britânico, tendo a polícia feminina e jovens que acabam se aproximando do crime como foco principal. Em As Sete Mulheres de Minha Vida (no original, the truth about women; na Argentina, lo que son las mujeres), são as experiências de diferentes mulheres com o casamento no início do século vinte.

Sempre com uma perspectiva histórica e social, Muriel Box fala abertamente sobre bigamia, prostituição, adultério, questiona as consequências das relações conjugais e da maternidade, tudo a partir do ponto de vista das mulheres. Alguns temas espinhosos para a época (e que ainda são contemporâneos, ao menos em países moralmente subdesenvolvidos como o nosso) e impossíveis na Hollywood dos anos 1950, ainda sob as regras morais do Código Hays.

Em uma cena marcante de Steet Corner, um policial misógino diz para uma colega que não gosta da presença das mulheres na corporação. A resposta é firme e Muriel Box aproveita a personagem para dar nome ao boi: “you are a woman hater“.  Logo no início de As Sete Mulheres de Minha Vida, ainda nos primeiros anos do século vinte, um homem conhece uma jovem sufragista que o desconcerta completamente ao afirmar que a mulher não precisa ser submissa financeiramente ao marido. Pelo contrário: se for o caso, ela pode sustentar o homem! Mais adiante, o mesmo sujeito aprenderá que no Ocidente o casamento é uma “barbaric institution” porque uma mulher sozinha precisa ser ao mesmo tempo: esposa, mãe, dona de casa, parceira de trabalho e escrava. Depois, veremos na prática como a maternidade pode anular a vida de uma jovem artista promissora com a cumplicidade de um marido que sequer percebe o que está acontecendo. No fim de tudo, já em meados do século, os varões seguem reclamando: “eu quero uma esposa que seja uma esposa, o problema das mulheres de hoje em dia é que elas não querem ser mulheres, elas querem ser homens”. A resposta da personagem que ouve as jeremiadas masculinas é serena e absolutamente contemporânea: “você está errado, elas só querem ser mulheres. Mas temos uma outra definição para o significado disso, ser uma mulher significa… ser uma pessoa. A equal partner in the business of life“.

Nada mais a dizer.

 

 

Diário do Bafici (5): Muriel Box

Diário do Bafici (4): A milonga de Paulo Rocha

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De novo, as histórias repentinas das filas.

À espera da sessão do Thriller, um jovem apareceu com um jornalzinho de 80 pesos e começou a falar sem parar. A publicação de algum movimento socialista tinha como tema de capa a Venezuela. Falava dos assassinados (por militares e paramilitares), questionava o chavismo e, se entendi bem, afirmava que a única saída era o povo tomar as ruas. Descobriu que eu era brasileiro e aproveitou para mostrar as páginas dedicadas ao país: “este artículo es de un compañero brasileño, se llama “por qué Bolsonaro no es fascista”. Antes que eu esboçasse qualquer reação, ele imaginou meu espanto e emendou: “sí, sí, necesitamos conocer realmente a nuestros enemigos!” e seguiu, mostrando a outra página, “este es un texto sobre los muertos del PT”.  Os artigos jaziam assim, lado a lado, como dois grandes amigos. A fila disparou e então perdi de vista o companheiro socialista, mas gostaria de ter dito: mi amigo… lo que necesitamos conocer realmente en los días de hoy son nuestros amigos.

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Talvez alguém argumente que o personagem de Luis Miguel Cintra de A Raiz do Coração (2000), a fantasia musical  política de Paulo Rocha, também não é fascista. O nosso presidente até poderia dizer que ele é um homem de esquerda. João Pedro Bénard introduziu a sessão explicando que a obra foi um fracasso de público e crítica, mas tirou da cartola um fragmento de um texto de seu pai, João Bénard da Costa, uma defesa apaixonada não apenas do filme, mas de uma ideia de cinema que jamais vai trocar o esplendor da mise en scène pela arte pálida do storytelling.

Isabel Ruth novamente roubou a cena e já chegou dizendo que não lembra nada. “Procurei na internet e descobri que é sobre um político fascista que se apaixona por uma travesti, vou acompanhar a sessão com vocês para ver se é isso mesmo”. Depois lamentou que Rocha não a tenha escalado para fazer o papel da personagem surda, alegando que ela foi inspirada em uma história sua dos anos 1960. Nas boates italianas, Isabel fingia ser surda para evitar os galanteios dos varões abusados daquela terra: “eu só queria dançar”. Alvaro Arroba, o programador espanhol que travou os melhores embates nos últimos dias, disse que pelo menos o Manoel de Oliveira a colocou como surda na obra-prima Vale Abraão. Ela não perdeu a chance: “quando você programar uma retrospectiva do Oliveira e me trouxer, a gente fala sobre isso”.

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Um dia após A Raiz do Coração, houve as duas últimas exibições do ciclo “Ruth y Rocha”: Vanitas (2004) – acompanhado do assombroso curta do início dos 1970, A Pousada das Chagas – e Se Eu Fosse Ladrão, Roubava (2013), um filme-despedida que encena de forma emocionante a morte do diretor, revisitando trechos de sua obra inteira. Revela algo que o ciclo já sugeria: a morte sempre esteve lá.

E o último filme também possibilitou que os espectadores se despedissem do próprio ciclo, um momento realmente histórico. Foi a primeira vez que uma retrospectiva de Rocha arrebentou a cordinha que limita as fronteiras da Europa. Todos os agradecimentos: João Pedro Bénard, pelo cuidado com as cópias restauradas maravilhosas (em 35mm e DCP), o programador Alvaro Arroba e, é claro, Isabel Ruth, que nos últimos dias só não fez chover na calorenta Buenos Aires. Cantou à capela algumas das belíssimas canções dos filmes, leu e dedicou a Rocha um poema de Borges (Milonga de Manuel Flores), falou da visita de seu grupo de teatro ao Brasil nos anos 1960, quando conheceu Bandeira, Drummond, Vinícius e Cecília. Explicou com mais detalhes o que tanto a incomoda nos filmes exibidos: “ao contrário do Oliveira, ele não tinha muita certeza do que queria. Seus filmes são confusos, eu fico angustiada quando estou em cena e não sei se o espectador está compreendendo. Fazer filmes é uma grande responsabilidade. Nós começamos nossas carreiras juntos, mas depois cada um pegou um caminho”. No fim de tudo, visivelmente emocionada, arrebatou: “eu amei muito ele”.  Uma relação intensa, com distintos momentos e aparentemente complexa. Mas eternizada em uma obra inteira. 

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Nos intervalos do Paulo Rocha tardio, o jovem Henry James. A coletânea de fantasmas é uma edição de bolso espanhola preparada (e comentada) pelo especialista Leon Edel. Já conhecia o primeiro conto, La leyenda de ciertas ropas antiguas, realmente o primeiro que James escreveu sobre o tema e que inspirou toda a parte da casa de Céline e Julie vão de Barco do Rivette. O segundo, ainda escrito na juventude, é De Grey, um relato romántico. Dois contos de maldição familiar que já trazem aquela qualidade absoluta da escrita do Henry James, a de conseguir falar simultaneamente do sobrenatural e das pequenezas grandiosas dos relacionamentos amorosos.

Ella, ciega, sin sintido y sin remordimientos, vaciaba de vida el ser de Paul. Ella florecía y prosperaba; él decaía y languidecía. Mientras ella vivía por él, él moría por su causa.

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A última sessão do dia foi cancelada. A inglesa Muriel Box deu lugar ao peruano Chan Chan, restaurante meio escondido em uma das vielas que nos tiram da Praça do Congresso. O preço é bom e a comida é uma delícia.

 

Diário do Bafici (4): A milonga de Paulo Rocha

Diário do Bafici (3): Christina e Marina

 

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As buzinas insistentes e eufóricas anunciam que o Racing foi campeão, os periódicos lembram que nesta mesma data, há 50 anos, o Almendra de Luis Alberto Spinetta fez seu primeiro show. Um domingo com cheiro de história em Buenos Aires coroado com a exibição de gala, na sala gigante do Cine Gaumont, da cópia restaurada (e sem cortes!) de Thriller – Um Filme Cruel (1974). E mais: com a presença da garota do tapa olho, Christina Lindberg. Ela é uma das homenageadas desta edição.

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Durante a projeção do lendário filme de vingança do sueco Bo Arne Vibenius, lembrei o tempo inteiro da saudosa Sala P. F. Gastal e de como o Cristian Verardi e o Carlos Thomaz Albornoz teriam saído absolutamente extasiados da sessão. Christina revelou muita coisa, inclusive os detalhes sórdidos: a famosa cena do olho foi feita sem autorização com um corpo de uma jovem que havia se suicidado na noite anterior. É o tipo de informação que o Thomaz compartilha com o público para depois encerrar o debate com a sua frase clássica: “no mais, o filme fala por si…” Uma noite de Projeto Raros no Bafici.

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A atriz avisou, ainda na apresentação, que já era conhecida na Suécia pelos filmes eróticos antes de Thriller, mas que as cenas pornográficas não contam com o seu corpo. Foram realizadas por um casal chamado Romeo e Julieta, famoso pelo sexo nos palcos dos inferninhos suecos. Depois, no debate, explicou sobre como o filme hoje é exibido em celebrações feministas, mas que na época foi rechaçado por mulheres ligadas à universidade em seu país, especialmente porque Christina era a estrela nua das capas de revista, dos filmes exploitation. Um corpo à venda. “Minha família era da classe operária, eu não tinha contato com o que estava sendo pensado nas universidades”.  O filme, a bem da verdade, não agradou ninguém na Suécia e acabou banido, mesmo com versões suavizadas (20 minutos de cortes).

Visto hoje, fica a impressão de que a primeira parte, quando a protagonista sofre todo o tipo de abuso e humilhação, é longa demais. Foram os anos dourados do exploitation, é claro, então todas as perversões humanas acabam virando matéria prima cinematográfica. Mas, por outro lado, as repetições angustiantes reforçam a ideia de um processo quase maquinal de desumanização daquela mulher, colocada à força no mercado do sexo. A atriz defendeu as cenas de violência e pornografia: “são importantes porque justificam a vingança”. O que eu acho mais interessante é que o espetáculo prometido nunca surge. A mudez da personagem ajuda, mas toda a vingança é amarga, com aquela câmera lenta estranhíssima nas cenas de ação. Ao contrário de outros filmes festivos do subgênero rape and revenge, Thriller é totalmente fúnebre, a mulher que mata já está morta. Lembra a protagonista do fantasmagórico A Mulher que Inventou o Amor, de Jean Garret, roteirizado por João Silvério Trevisan, um belo par para o filme de culto sueco (ah se o Tarantino descobre a obra do Garret…).

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Dentro das fronteiras do festival, acho que o Thriller poderia render um debate interessante (ou uma grande batalha campal) exibido ao lado de Ma nudité ne sert à rien, a nova obra da Marina de Van, um autorretrato da artista enquanto mulher que trabalha com o corpo e envelhece. Os sonhos me tiraram um pouco das reflexões da diretora, mas gostaria de ver o filme sobre uma mulher que está nua (mas nunca objetificada) e que fala sobre sua condição o tempo inteiro ao lado do exploitation sueco sobre essa garota quase adolescente que está nua, não fala nada, sofre todos os horrores para uma câmera que quase baba nela, e depois parte para uma vingança contra o mundo culpado.

Abraçando as ideias ruins até o abismo. Para resgatar o espírito dos filmes soft porn lésbicos dos anos 1970, a sessão dupla poderia se chamar: Christina e Marina.

 

 

Diário do Bafici (3): Christina e Marina

Diário do Bafici (2): Paulo Rocha no topo do mundo

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Sob a influência do cansaço, o segundo diário vai misturar dois dias e algumas ideias soltas. Não faz mal porque por enquanto o Bafici é todo do Paulo Rocha.

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A mudança da sede para Belgrano trouxe algumas boas novas além da viagem longa de metrô. A principal delas é a proximidade do barrio chino e seus restaurantes bons e baratos (nem todos). Se o cartão voltar à vida, um pato morrerá.

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Filas enormes no Teatro General San Martín, na Corrientes, onde fica a Sala Lugones (lá exibem boa parte dos clássicos). Não são para nenhum filme, mas para a peça Petróleo, do Piel de Lava, o grupo teatral das quatro atrizes de La Flor. Diz a plaquinha na boleteria: todo agotado hasta el final.

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As melhores histórias de um festival surgem nas filas. Pode ter sido a influência da obsessão com as repetições do Mac e seu Contratempo, livro do Enrique Vila-Matas que acompanhou os primeiros dias de viagem, mas o caso é realmente inusitado: na noite de sexta-feira, um casal se enrolava para comprar o ingresso do cinema e a mulher desabafava com uma senhora, que queria comprar uns 500 ingressos para vários dias e atrasava a filma dos desesperados que queriam pegar a próxima sessão (quando o filme começa, não dá mais para entrar): “nós sempre atrasamos e perdemos a peça…  terminamos vendo qualquer filme que está sendo exibido no horário… e o filme é sempre ruim!” A senhora disse que poderia ajudá-los porque passou 4 horas em um café estudando toda as armadilhas da programação. “Você trabalha de graça para o festival”, o rapaz respondeu cheio de ironia besta. Mas ela foi rápida na tréplica, com aquela soberania típica das viejas portenhas, “eu trabalho para o meu prazer no festival”.  Eles perguntaram se o filme era bom e a senhora disse que deve ser triste porque é português. Foi O Desejado ou As Montanhas da Lua, um labirinto de amores e tensões políticas do Paulo Rocha sobre as entranhas palaciais portuguesas pós-Revolução dos Cravos. Fico imaginando o que passou na cabeça do casal quando João Pedro Bénard, que representava o filme (trabalhou na equipe) e a cópia restaurada em 35mm (é responsável por elas na Cinemateca Portuguesa) tentou explicar no debate o que era o mito do sebastianismo e como Rocha, mesmo com um filme mutilado pelos produtores franceses, conseguiu aproximá-lo a outro mito resistente da península ibérica, o de Don Juan.

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Pouco antes no fim da tarde, na salinha menor do imponente Cine Gaumont, também no centro da cidade, houve a exibição do precioso documentário A Ilha de Moraes, sobre o escritor Wenceslau de Moraes, que compartilha com Rocha uma relação apaixonada e intensa com o Japão. João Pedro Bénard explicou que o filme era, de um certo modo, um autorretrato e que sua realização foi uma forma de exorcizar de vez o fantasma de Moraes, uma espécie de duplo luso-nipônico do diretor. Faltou, na programação, a elogiada ficção de quase 3 horas que Rocha criou anos antes sobre o mesmo escritor, A Ilha dos Amores.

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No sábado, de volta a Belgrano, na fila para o documentário modernista de Paulo Rocha sobre o grande modernista português Amadeo Souza-Cardoso, Máscara de Aço contra Abismo Azul, havia um casal familiar na minha frente. Logo a mulher começa a reclamar:  “a gente sempre se atrasa e acaba vendo um filme ruim”! Reconheci o papo na hora. Não houve resposta nem outra interlocução, falou ao vento. Dei uma torcida no pescoço para confirmar a identidade dos dois e então veio a surpresa: ele era o mesmo homem, mas a mulher era outra! O “golpe do cinema português” no lugar do boa noite cinderela.

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E a segundo sessão de Paulo Rocha no dia foi inesquecível. Exibição de O Rio do Ouro novamente com as presenças do João Pedro Bénard e da Isabel Ruth. E ela mais uma vez destruiu todos os protocolos e fez pouco caso (estou sendo gentil) do cinema português inteiro, incluindo Manoel de Oliveira, com quem trabalhou em várias obras-primas (Vale Abraão, Viagem ao Princípio do Mundo, Vou para Casa…): “muito dos seus filmes são bons para ouvir, outros são bons só para ver, meu favorito é O Passado e o Presente”.

O João Pedro Bénard só ria enquanto a atriz e Alvaro Arroba, o programador espanhol apaixonado pelos grandes filmes portugueses, discutiam sobre quem é maior, Fellini ou Oliveira. Impressão é a de que o filme não tinha acabado e que a Isabel Ruth pegou o microfone com as mãos ainda cheias de sangue. Por enquanto, é a obra-prima de Rocha. Mais incrível ainda que o Mudar de Vida. Filme de maturidade, mas daqueles que chegam nesse estágio sem perder o desejo de invenção (pudera, havia filmado dois documentários pouco tempo antes, um sobre Oliveira e outro sobre Imamura). E tem a luz mais bonita que já vi num filme. Acho que faz jus à famosa máxima de Mizoguchi, o grande mestre do português: “é preciso lavar o olho após cada plano”

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Se a tensão política vertiginosa de O Desejado sugere um diálogo com o Terra em Transe do Rocha de cá, acho que O Rio do Ouro daria uma sessão dupla iluminada com O Viajante do Paulo Cesar Saraceni, realizado naqueles mesmos anos do enterro da década de 1990.

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Uma das coisas que eu mais gosto em Buenos Aires, além da quantidade infinita de livrarias (já achei uma preciosa coletânea dos fantasmas do Henry James) é que quase todos os restaurantes colocam o cardápio com os preços na entrada.

 

 

 

 

 

Diário do Bafici (2): Paulo Rocha no topo do mundo

Diário do Bafici (1): A morte a rir dos nossos verdes anos

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Viagem longa, terra e mar, tudo dá certo e dá errado ao mesmo tempo. As horas se encaixam de tal forma que o itinerário sugere ter sido programado não pelo acaso mas por um supercomputador libriano. Enquanto isso o terror tecnológico planeja a vingança: telefone e o cartão renunciam e parece irrevogável (Justine e Juliette vão de ônibus e de barco). 
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Deu tempo de pegar o metrô quente e chegar em Belgrano – que roubou da Recoleta o posto de sede do festival – para a primeira e mais planejada sessão. A cópia restaurada de Os Verdes Anos (1963) abriu uma das principais retrospectivas do Bafici neste ano, dedicada a Paulo Rocha e a Isabel Ruth, nomes centrais do novo cinema português dos 1960. A atriz apresentou (“é um retrato da minha juventude”) e depois comentou (“na época, achei horroroso, hoje acho que éramos ingênuos”). Ela deve ter seus motivos pra não fazer muito caso desse marco cinematográfico de Portugal, mas não é toda história que faz um aparente namorinho de portão virar outra coisa da forma desconcertante como esta faz. Acho que faz o mesmo com Lisboa, da capital turística à cidade pesadelo. Mas as narrações do tio do protagonista roubam a cena dos pombinhos (nem tão) apaixonados. Não lembro bem o texto, mas lá pelas tantas surge essa maravilha: “nunca hei de saber a razão do que aconteceu naquela noite porque não sei o que aconteceu naquela tarde”.
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Depois da sonhada fugazzeta, a segunda sessão do dia com o Barbara Rubin and The Exploding NY Underground, de Chuck Smith. É a mesma década do filme lisboeta, mas o universo é outro. O documentário resgata a história de uma das figuras mais iluminadas do underground americano, diretora de Christmas on Earth (1963), filme-performance ultra erótico e provocador com direito a projeção dupla (uma imagem maior preenche toda a tela com bocetas gigantes e outra imagem menor, centralizada, traz delirantes orgias psicodélicas).
Há um cuidado biográfico porque Rubin, apesar de toda a importância no cenário artístico novaiorquino dos anos 1960, é hoje uma personagem praticamente esquecida. Descobrimos tudo: as experiências com drogas na adolescência, o encontro salvador com Jonas Mekas, a produção de sua obra-prima (aos dezoito anos!), a amizade com Allen Ginsberg, Shirley Clarke, Bob Dylan (ela está na foto da contracapa de Bringing It All Back Home), Andy Warhol (ela o levou para o show de uma banda nova, o Velvet Underground…), o pedido para que Walt Disney produzisse uma continuação de Christmas on Earth com um elenco que incluía Beatles e Rolling Stones, a conversão ortodoxa nos anos 70 e sua morte repentina. A quantidade de material de arquivo impressiona e confirma aquilo que todos dizem no filme: ela tinha uma energia especial. Antes do longa, houve uma linda homenagem em curta-metragem, Keep Singing: A Tribute to Jonas Mekas, também dirigido por Chuck, mas o mestre lituano certamente irá concordar: hoje todas as  estrelas da noite são da Barbara Rubin. Os calos nos pés também.

 

Diário do Bafici (1): A morte a rir dos nossos verdes anos

Tinta Bruta: entrevista

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A entrevista com Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, os diretores de Tinta Bruta, foi realizada para a nova edição do Zinematógrafo, lançada em janeiro de 2019. Também participaram Juliana Costa e Pedro Henrique Gomes, que fez a transcrição e o texto de apresentação.

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No último mês de 2018 entrou em cartaz Tinta Bruta, novo filme dos cineastas Filipe Matzembacher e Marcio Reolon (Beira-Mar, 2015). De Porto Alegre, em Porto Alegre e, de várias formas, sobre Porto Alegre, o filme conta a história de um jovem que ganha a vida por meio da internet, em seu quarto, realizando performances eróticas para um público anônimo. Abaixo o leitor confere a entrevista na íntegra.

Leonardo Bomfim, Juliana Costa e Pedro Henrique Gomes.

12 de dezembro 2018

Pedro Henrique Gomes: no Beira-Mar, assim como no Tinta Bruta, existe uma relação muito forte com o espaço e esse espaço é crucial nos filmes. No primeiro em função da própria geografia do lugar, o litoral gaúcho, a frieza, o céu sempre nublado, e, no segundo, pela forma como a cidade de Porto Alegre é retratada, uma cidade mais escura. Pra começar eu gostaria que comentassem o quanto essa relação é presente na concepção de cinema de vocês desde o início do processo do filme.

Márcio Reolon: o nosso ponto de partida surge de personagens e muito da relação deles com o espaço. No Beira-Mar, por exemplo, muito antes da ideia da história, até porque muitas coisas nós fomos criando enquanto filmávamos, era importante já pensar a relação desses dois meninos numa casa em frente ao mar com a ideia de que nunca vemos o mar, mas ele está sempre presente. Isso para nós sempre foi muito forte, já era um ponto de partida. No Tinta Bruta a mesma coisa. A cidade e a relação do personagem com ela, que ali era muito a nossa relação com Porto Alegre também, vinha muito disso. Isso estava presente no embrião do projeto mesmo antes de ser Tinta Bruta, quando era Quarto Vazio, era um filme sobre isso, por mais que a cidade não aparecesse no filme, pois era um filme totalmente de apartamento, era muito isso de uma pessoa presa a uma cidade em que as pessoas vão embora.

Filipe Matzembacher: desde o início no roteiro já tinha uma ambientação para dar essas características para a cidade. Discutíamos muito a questão de enxergar e materializar Porto Alegre com uma antagonista, talvez nesse sentido ela seja a grande antagonista do filme. No Beira-Mar a cidade está muito presente mas não tem tanto esse papel.

MR: no Beira-Mar o espaço tem toda uma função simbólica para nós. Aquele mar chamando era quase um chamado da idade adulta, entrar no mar era quase um rito de passagem, ou seja, finalmente enfrentar aquela coisa gelada e violenta.

PHG: parece com o final do Tinta Bruta, quando o personagem, com a catarse daquela dança, externaliza aquele sentimento que se mantinha guardado durante todo o filme.

FM: nos interessa muito contar histórias em que um personagem esteja entre grandes eventos da sua vida. Dessa maneira conseguimos focar no interno do personagem, como ele reage após um acontecimento que o marcou. Não nos interessava tanto o que viria depois e sim como esse acontecimento o modificou. Os dois filmes têm muito isso.

Leonardo Bomfim: tem uma questão muito interessante que é o corte final. Ele separa o filme do personagem. Era importante mostrar aquilo que o personagem estava passando, aquele momento. Ele passou por uma experiência muito forte, houve uma transformação. Mas a minha impressão é que, por outro lado, vocês não poderiam trair o filme. Se vocês fizessem um final com ele dançando durante dez minutos o filme teria um desfecho com uma energia totalmente diferente, inclusive em relação à cidade.

FM: esse foi um dos planos em que mais experimentamos.

MR: se deixássemos a dança inteira teríamos um final mais “feel good”, mas o filme não é sobre isso, como se no final tudo fosse ficar bem. Pelo contrário, ele está totalmente na merda em meio aquilo tudo.

FM: para nós era interessante chegar naquele corte brusco pois o filme tem esse registro. A montagem, o som, mesmo a fotografia e a direção de arte trabalham com esse registro bruto nos cortes e na forma como registram os espaços. Não faria muito sentido terminar o filme em êxtase.

LB: mas isso de certa forma cria um mal-estar no espectador.

Juliana Costa: sim, ele frustra pois se torce para o personagem mesmo sabendo que não existe uma solução ou uma redenção, mas é inevitável essa sensação.

LB: muitos filmes fazem isso, encerram com um final redentor.

FM: seria a opção mais segura [colocar toda a dança] se fôssemos pensar em termos de público. Mas com o corte naquele momento percebemos que tem o início de um sentimento de suspensão e depois um retorno. Se tivéssemos deixado por três ou quatro minutos ele dançando o espectador começaria a analisar somente esteticamente a dança, perdendo toda a potência do ato do personagem.

JC: eu acho que o filme é muito maduro e coisa de quem sabe o que está fazendo. Ele é muito determinado, é possível ver o tempo que vocês trabalharam nele, o investimento de pensamento, de cuidado e controle. Como vocês lidaram com essa questão do controle e do improviso, se coube improviso nesse processo e se vocês têm essa vontade do controle do cinema?

MR: uma coisa muito importante para nós foi termos feito o Beira-Mar. Foi um filme que fomos fazendo de forma instintiva, não tínhamos muita pretensão com ele. Não sabíamos nem se ia sair um longa.

FM: a gente brincava dizendo que depois que acabasse poderíamos colocar ele no YouTube.

MR: a gente ia filmando, inventando. Então para nós era muito mais um exercício. Por ele ser tão livre nesse sentido nos possibilitou ver coisas que são importantes pré-definir e coisas que gostamos muito de desenvolver e de deixar aberto ao acaso. Nós tentamos buscar essa dualidade. O Tinta Bruta é um filme muito roteirizado e planejado em muitas coisas, mas mesmo no roteiro deixamos muitos gaps para o improviso, para pensarmos no set como filmar isso e aquilo.

FM: gostamos muito do processo teatral. Ele é muito rico e bonito. Algumas vezes me identifico mais com ele do que com o processo cinematográfico, que é muito vertical e às vezes enxergo essa verticalidade nos filmes de uma maneira negativa. Uma vez que tentamos tornar esse processo mais horizontal e mais longo, boa parte da nossa tarefa desde o início é saber claramente o universo que estamos querendo contar e os motivos pelos quais estamos fazendo o filme. As pessoas que estão ao nosso redor precisam ter vontades parecidas, entender os motivos do filme também e se identificarem com isso. A partir disso elas vão começar a acrescentar coisas ao filme que estão no mesmo universo.

MR: nunca fizemos teste para nenhum filme, tanto que o nosso casting, por exemplo, é muito mais uma questão de gerar uma afinidade, uma comunhão de vontades, do que pra mostrar o quanto se sabe atuar. Se podemos investir em alguma coisa sempre investimos em tempo. Tendo um processo longo nós encontramos essas coisas todas.

FM: quando se tem tudo mais claro na cabeça de todo mundo, quando tu chega no set, se alguém vier com uma ideia nunca vai ser muito… porque o improviso tem esse problema, muitas vezes ele vem pra uma coisa que não tem relação alguma com o filme. Se está todo mundo na mesma página ele pode vir para acrescentar mesmo.

PHG: a sequência final, da forma como vocês a construíram, já estava presente desde o início, no roteiro, ou vocês foram descobrindo ela ao longo do processo:

MR: ela não estava no primeiro tratamento do roteiro, não era exatamente assim. Ele mudou bastante. O golpe [processo que culminou com o impeachment de Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016]  uma coisa determinante na mudança da perspectiva do filme. Ele era muito mais sobre partidas e performances. A violência em si atravessou nesse momento do golpe, foi uma coisa que nos violentou muito.

FM: o Pedro ser essa pessoa reativa foi um ponto muito importante pra nós.

MR: exatamente. O filme terminava de outra forma pois não tinha tanto essa jornada de reação.

PHG: já que vocês entraram no aspecto político, fico pensando no Tinta Bruta não só como um filme político, mas feito politicamente, no sentido de que não precisa ficar nomeando as coisas, elas já estão ali presentes na representação, na violência psicológica e simbólica da cidade. Isso é muito evidente no filme.

FM: isso é uma coisa que nos interessa muito. A gente sempre pensa politicamente o filme desde o início. Mas é uma questão que tomamos muito cuidado nos nossos filmes, não nomear demais as coisas, personificar demais elementos político-sociais que estão no imaginário de todo mundo. No geral o cinema brasileiro faz bastante isso.

MR: pelo bem e pelo mal, mas pra gente não interessa tanto dessa forma a realização.

LB: mas vocês criam os antagonismos no início porque não sabemos muito bem porque aquele julgamento está acontecendo, mas vemos muito bem crucifixos e duas bandeiras: do Brasil e do Rio Grande do Sul. Pra mim fica claro que é isso que está dizendo que ele está errado, que ele cometeu um crime, são esses símbolos.

PHG: fora os fantasmas nas janelas, aquelas silhuetas obscuras.

MR: sim, é um filme que a gente concebe ambientado numa Porto Alegre muito específica, mas ele é um filme sobre um Brasil que a gente está vivendo. Isso está muito conectado. Mas quando a gente trouxe justamente esse processo de golpe pra dentro do Tinta Bruta, essa coisa do ambiente que circunda ele, isso pra nós era o Brasil acontecendo, ou desacontecendo.

JC: mas ao mesmo tempo é muito Porto Alegre. Talvez Porto Alegre tenha se estendido pro Brasil. Sempre foi uma cidade muito pioneira, o berço do conservadorismo. Conservadora e provinciana. Eu acho que o controle das janelas é a cara do provincianismo de Porto Alegre, cidade que é claustrofóbica no sentido de que todo mundo se vê e se controla.

LB: e a própria internet, não só as janelas. Hoje muitos filmes têm a internet como esse espaço virtual como um outro espaço, só que vocês rapidamente já o colocam como um espaço de vigilância e que pode ser opressor.

MR: nos interessa muito tentar complexificar esses espaços. Normalmente, a internet quando entra no cinema é como vilã ou como uma libertação, uma válvula de escape. Os espaços são complexos, o Pedro é um personagem muito complexo. Ele faz muitas coisas que não são legais, não é um personagem ideal. O Léo a mesma coisa. Isso é o interessante, encontrar essas complexidades.

FM: o Pedro tem uma relação com o olhar o tempo todo: ele fura o olho de um colega, têm as pessoas nas janelas olhando ele, tem a internet. Ele tem essa fobia do olhar mas ao mesmo tempo a solução dele, para “sobreviver”, é criar um trabalho em que ele é observado por milhares de pessoas.

JC: é, e isso eu acho que é muito o filme de uma geração, retrato de uma geração na relação com a cidade, com a internet e personagem/vida real. Como esses jovens lidam com isso de uma forma mais livre no sentido de que não é estranho ter um personagem e ser outra coisa ou o inverso. Isso não é uma contradição e inclusive se complementam.

FM: eu acho que foi muito o processo de termos nos debruçado por bastante tempo no roteiro, aí a gente começa a perceber essas questões. O Pedro carrega isso porque nos dedicamos muito no roteiro pra ele, pra entender, pra absorver aonde que estava inserido socialmente, seja na cidade ou na geração a qual ele pertence.

JC: tem algo dessa geração que, ao mesmo tempo em que vai atrás do olhar, ao se expor, renega o olhar, tem uma relação complexa com o olhar do outro.

PHG: ainda no aspecto do olhar, de estar sendo observado, tem a ideia da encenação. Ele tem o controle daquele jogo até certo ponto. Quando o Leo aparece ele embaralha ainda mais a encenação, propondo novos jogos. É um aspecto muito rico no filme.

MR: isso nós pensávamos muito, era uma vontade nossa fazer um filme sobre perfomance. Isso pode ter tanto a ver com o nosso passado como atores, o nosso interesse pela representação, pela atuação, e também tem relação com o queer, a ideia de que estamos sempre performando. Colocar a roupa pra sair de casa é uma perfomance.

LB: eu acho que o filme completa uma trilogia da performance no cinema gaúcho com o Castanha (Davi Pretto, 2014) e o Rifle (Davi Pretto, 2016). Tem uma relação geracional, dessa geração que saiu das universidades mais ou menos no mesmo período, mas é uma relação da performance e do isolamento. Todos têm protagonistas com dificuldades para estabelecerem relações. E nisso é possível até ampliar o arco para o Eles Vieram e Roubaram Sua Alma (Daniel de Bem, 2016) e o Desvios (Pedro Guindani, 2016). É questão que “trai”, digamos, a essência do cinema gaúcho que sempre foi um cinema de turma, de galera. Tanto a geração do Super-8 quanto a do Gustavo Spolidoro, do Fabiano de Souza. Isso era um pouco a marca do cinema gaúcho. Não sei se vocês enxergam essa relação, mas pra mim houve uma mudança no próprio cinema gaúcho.

FM: talvez seja um pouco o reflexo… o cinema é reflexo da política, da sociedade. Se a gente for analisar os anos 1990 e início dos anos 2000, como era a cidade e o Rio Grande do Sul e como está hoje, isso vai refletir no cinema, na forma como se enxerga a sociedade. Teve um debate que alguém falou que o Beira-Mar era um filme otimista. Se a gente fizesse o Beira-Mar hoje não faria sentido, pelo menos pra nós. Teríamos que fazer um filme diferente.

JC: a trilogia da incomunicabilidade do cinema gaúcho…

LB: aí acho que são mais de três filmes.

FM: fico imaginando a efervescência do Ainda Orangotangos (Gustavo Spolidoro, 2007), que é muito resultado anos 1990. Se a gente fosse representar Porto Alegre dessa maneira as pessoas iriam achar estranho.

LB: acho que tem um ponto de corte: a saída do PT e a entrada do PMDB e o momento em que o Júpiter Maçã deixa de ser uma referência e o Vitor Ramil se torna uma referência, por exemplo, você sai de Um Lugar do Caralho pra Estética do Frio.

JC: pensando nas referências, queria que vocês falassem um pouco mais sobre como elas se relacionam com o novo filme.

MR: nos interessava esse cinema queer underground nova-iorquino dos anos 1960/70. Paul Morrissey é um diretor que nos toca bastante.

FM: acho que Flesh (Paul Morrissey, 1968) é um dos filmes que a gente mais viu na vida.

MR: o plano inicial do Tinta Bruta é uma homenagem direta ao plano inicial do Flesh. A Claire Denis é uma cineasta que sempre nos toca. Tem o Ira Sachs também, com o Deixe a Luz Acesa (2012) que é um cineasta que a gente admira bastante. No geral nos interessa cineastas com o olhar voltado ao humano.

MR: Gus Van Sant é um cineasta super importante pra nós, principalmente a fase inicial da carreira. O próprio Garotos de Programa (1992) se relaciona com o Tinta Bruta em muitos pontos.

paranoidpark2FM: lembro que, quando assisti Paranoid Park, pensei: “Foi a primeira vez que eu vi a adolescência no cinema”. Deveria ter o nome desse filme do lado da palavra adolescência no dicionário.

 

FM: O Jia Zhangke, que tem um cinema muito sobre personagens. Derek Jarman a gente assistiu muito durante o processo. Fassbinder, que tem muito essa questão de sociedade e personagem. Ele está discutindo encenação, dramaturgia, e isso nos interessa muito.

MR: tem o Alain Guiraudie. Talvez Um Estranho no Lago (Alain Guiraudie, 2013) seja o meu filme favorito nessa década. O filme tem muito isso de criar o suspense aos poucos, que é algo que a gente flertou também no Tinta Bruta.

JC: tem a relação com a sexualidade, com o desejo… desejo da violência.

LB: essa é uma questão central no cinema contemporâneo, a relação do cinema queer com a violência. Com o Tinta Bruta a impressão é que vocês quiseram fazer um filme ultraviolento.

FM: a violência está presente. O queer nos anos 1906/70 foi muito ligado a uma ideia de criminal queers que nos interessa muito. Com o Tinta Bruta a gente queria ter um pouco disso. O Pedro não é um personagem obediente. Ele é violentado e ele violenta também. Pra gente seria esquisito ignorar toda a violência na qual estamos imbuídos.

MR: o cinema queer muitas vezes dedica muito tempo de tela pra retratar a homofobia, e isso acaba as vezes sendo muito agressivo e nós buscamos evitar isso. Tanto que a gente nunca mostra nenhuma agressão homofóbica. Isso pra gente era importante. O Pedro até apanha dos caras na rua mas é pela vingança por ele ter furado o olho do colega. Isso [a violência, a homofobia] está no personagem, naquele corpo, na cidade, no discurso, mas não queríamos trazer aquele gay bashing que é tão comum no cinema.

FM: isso está ali, não precisa ter ninguém gritando “seu veado” pra que o espectador olhe e identifique [a violência].

MR: isso é uma coisa que nós conversamos durante o casting do filme, que sabíamos que teríamos atores negros, o Bruno [Fernandes, que interpreta o Léo] principalmente. Como a gente tem esse processo longo, discutimos bastante com o elenco, principalmente o que fica mais tempo no processo, tentamos buscar espaço para que eles possam sugerir coisas. Isso a gente abriu pro Bruno e falou: “Olha só, têm pinceladas aqui no roteiro sobre racismo”. O Bruno nos falou uma coisa que pra gente foi muito marcante: “No momento que eu entro em cena, as pessoas já sabem tudo o que eu carrego. No momento em que eu sou um negro e estou ali falando de opressão, as pessoas sabem do que eu estou falando”. Então não precisamos literalizar isso, essas coisas estão impressas naqueles corpos que estão sendo retratados.

PHG: saltando de assunto: se não me engano tanto o Beira-Mar quanto o Tinta Bruta não têm sol. Mesmo nas cenas internas, prevalece a escuridão, aquelas silhuetas, certa estranheza.

JC: o sol está em falta no Brasil.

LB: cineastas vampiros.

FM: bom, eu adoro vampiros.

LB: o próximo filme é de vampiro, então.

FM: não é o próximo, mas a gente tem esse projeto. O Beira-Mar tinha muito o reflexo de querer lembrar da nossa adolescência de ir pra Capão no inverno, com aquele litoral completamente cinza, sem saturação. No Tinta Bruta têm até momentos de sol, por exemplo, na cena com a colega de dança tem um solzinho.

PHG: mas ali é passageiro, o sol passa e daqui a pouco já vai fechar.

FM: é, mas isso muito pra representar o sentimento do Pedro, esse cara que não sai do quarto, um cara pálido. Ao mesmo tempo que não é uma Porto Alegre muito fria, por outro lado é uma cidade sem vida.

Tinta Bruta: entrevista

A Dama na Água vai ao paraíso

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Fui ao cinema esperando um diálogo umbilical com Corpo Fechado e Fragmentado, mas a estreia de Vidro, a nova maravilha de M. Night Shyamalan, retalhou as expectativas e me fez rever tudo o que mais admiro em meu filme favorito do diretor: A Dama na Água. 

Aproveito para resgatar uma versão revisada de um texto antigo sobre um dos inimigos mais malditos da indústria cinematográfica americana, aquela que costuma assassinar reputações quando elas deixam de dar lucro ou começam a revelar, tal como fez o personagem Monsieur Verdoux de Charles Chaplin, mais do que deveriam sobre as fraquezas de seu próprio sistema.

A FANTASIA ENVERGONHADA

A rejeição enorme ao filme diz muito sobre o momento que o cinema popular de Hollywood viveu nos anos 2000. Basta lembrar que a obra é contemporânea à incensada e influente trilogia do Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan. Falava-se muito da verve realista, da tradução do sentimento americano pós-11 de setembro, da Gotham City sombria como a metáfora ideal para a Nova York do século vinte e um; mas pouco sobre o que surgia ao mesmo tempo: super-heróis com vergonha das fantasias (o azul virou cinza; o vermelho, vinho escuro…), a necessidade quase desesperada de estabelecer uma verossimilhança psicológica em personagens de natureza completamente ficcional, uma falta de tato com a inventividade e o senso de humor. Alguns podem argumentar que isso vem da matriz, mas basta pegar O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller, praticamente um Bandido da Luz Vermelha em quadrinhos, para notar que um retrato sombrio de um super-herói não precisa abandonar a irreverência e a imaginação.

Um dos aspectos mais sintomáticos desse período é que quase todas essas trilogias de heróis da primeira década do século levam um longa-metragem inteiro – com mais de duas horas de duração! – para convencer o espectador de que alguém fantasiado vai sair pelas ruas combatendo o crime. Isso é algo que uma história em quadrinhos sempre resolveu em um quadro, em uma imagem apaixonante – e que Shyamalan também resolve em uma cena: o protagonista de A Dama na Água, vale lembrar, também é um frustrado administrador de tragédias pessoais, também tem um passado que pesa; da mesma forma, o contexto americano é esmagador, a Guerra do Iraque está presente, mas tudo isso entra naturalmente dentro da grande fantasia, não precisa formar uma espécie de prelúdio para que a ação enfim aconteça.

Não é estranho, portanto, ver obras que abraçam com gosto o universo dos quadrinhos (o Hulk de Ang Lee, outro maldito da época, mas já podemos até citar os clássicos fora de moda de Richard Donner e Tim Burton), um tanto marginais dentro do status quo do cinema de entretenimento, marcado por heróis e cineastas que no fundo não acreditam na própria fantasia.

E se A Dama na Água foi pintado imediatamente como o patinho mais feio, apesar de ser um dos filmes mais belos (aqui no sentido visual mesmo: das cores, da luz, das composições) do nosso tempo, é porque propõe uma relação com a fantasia que não encontrou eco dentro do império cinzento da indústria hollywoodiana daquela época. Como falar dos Estados Unidos do início do século vinte e um com uma jovem ninfa de outro mundo, uma fera com pelos esverdeados, uma águia gigante e macacos protetores? Ou com uma trupe de personagens que inclui um sujeito que malha apenas um lado do corpo, um caricato crítico de cinema arrogante e amargo, um garoto que encontra a verdade na caixa de cereais? O grande trunfo do filme de Shyamalan, e que diz muito sobre o espírito de sua obra, é que ninguém duvida da existência dessas criaturas (dos seres e dos vizinhos de outro mundo!). E assim uma fantasia alimenta a outra: a aparição da jovem ninfa, a lenda contada pela velha chinesa… Ver para crer, crer para ver. Ou, como poderia ter dito Méliès: no cinema isso é simples como arrancar a própria cabeça.

O pior de tudo é que os cineastas e os heróis macambúzios acabaram gerando outra figura: o espectador dotado de um ceticismo arrogante e de um complexo de épico (aquele da música do Tom Zé), que muitas vezes não admite ver uma obra que toma a fantasia como realidade e brinca com a narrativa de modo livre, bem-humorado, inclusive revelando o prazer da zombaria ao olhar para si. Enquanto o aspecto metalinguístico dos heróis cinzas levam os filmes ao questionamento (e a confirmação messiânica) sobre a necessidade desses seres extraordinários em uma sociedade americana doente (a mesma de A Dama na Água, diga-se), o de Shyamalan remete ao questionamento sobre as regras do jogo da própria história, ao quebra-cabeça em relação ao papel que cada um deve ocupar para que a fantasia siga até o fim. O mundo não precisa da jovem ninfa, o mundo precisa das histórias sobre ela.

O MONSTRO TEM DUAS CABEÇAS 

lady in the water 44M. Night Shyamalan é um tipo cada vez mais raro dentro do cinemão contemporâneo. É o roteirista engenhoso, o rei das reviravoltas que nos obrigam a repensar tudo o que acabamos de ver; mas também é o cineasta genial, seguidor da melhor tradição dos grandes nomes de Hollywood, a de quem consegue, a partir de um movimento de câmera ou de uma composição inventiva ou de uma decupagem sensível (às vezes tudo isso ao mesmo tempo), transformar uma cena aparentemente banal que em palavras não despertaria muita coisa, num momento cinematograficamente maravilhoso (um exemplo: a abertura com a caça às baratas de Paul Giamatti).

O prazer de contar uma história aliado ao prazer de filmar uma história: A Dama na Água é um caso excepcional porque pega um momento de ápice. A certeza do que fazer possibilita uma obra completamente consciente de suas armas, mas que nunca abre mão da invenção e do mistério. Poucos filmes aproximam personagem e espectador de forma tão honesta. Dividimos, ao longo da narrativa, a caça ao tesouro: quem pode ser tal personagem, como deve acontecer a cena, como completar uma história que já está totalmente escrita? Esse mundo descrito, previsto, precisa apenas acontecer. Não é o mesmo trabalho que o cineasta tem diante do roteiro? Quando acontece essa transferência dos prazeres do cinema (da criação com a câmera à criação dentro da sala escura), há sempre um momento arrebatador. Pois entre a farsa e o terror, a história de ninar e a comédia surrealista, num filme justamente sobre a reencenação de uma história, Shyamalan deixa claro que é preciso pensar cada cena como um momento glorioso e não apenas como uma sequência de planos destinados e narrar alguma coisa. E sugere: o espectador também pode pensar assim.

Se quisermos tirar o filme da solidão, portanto, precisamos procurar a companhia da experimentação visual dos últimos filmes de Godard (como sugeriu David Bordwell) ou de um Histórias Extraordinárias (2008) do argentino Mariano Llinás, filme de quatro horas e uma infinidade de narrativas, que chega a promover uma longa e deliciosa digressão sobre um personagem para depois dizer a história é outra e iniciar mais uma (e também deliciosa) narração (não é a mesma coisa que acontece em A Dama na Água após descobrirem que as hipóteses sobre a fábula estão todas equivocadas?). Outra sugestão preciosa de Shyamalan: o espectador também pode errar.

Também podemos aproximá-lo ao cinema de cores e sensações Apichatpong Weerasethakul e vê-lo ao lado de uma obra como Tio Boonmee, que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), em que seres como o fantasma de uma mulher e um homem-macaco convivem com naturalidade com toda a família. O lugar do filme é em outro mapa do cinema, o da necessidade da fabulação para que o mundo possa existir em sua dimensão mais prazerosa.

Alguém já falou: o mundo é aquilo que vemos. Mas se perguntarmos o que é este nós, o que é este ver e o que é esta coisa ou este mundo, penetramos num labirinto de dificuldades e contradições. Há aqueles que reagem a esse pulo de interrogações despertando a pior paranoia possível (quantos heróis dos anos 2000 mereceriam uma sessão de terapia no lugar de um filme?). Há outros, e é o glorioso caso de M. Night Shyamalan, que criam um grande parque de diversões dessa meada cheia de dobras, desconfianças e veredas instigantes. 

 

 

A Dama na Água vai ao paraíso