Tinta Bruta: entrevista

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A entrevista com Filipe Matzembacher e Marcio Reolon, os diretores de Tinta Bruta, foi realizada para a nova edição do Zinematógrafo, lançada em janeiro de 2019. Também participaram Juliana Costa e Pedro Henrique Gomes, que fez a transcrição e o texto de apresentação.

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No último mês de 2018 entrou em cartaz Tinta Bruta, novo filme dos cineastas Filipe Matzembacher e Marcio Reolon (Beira-Mar, 2015). De Porto Alegre, em Porto Alegre e, de várias formas, sobre Porto Alegre, o filme conta a história de um jovem que ganha a vida por meio da internet, em seu quarto, realizando performances eróticas para um público anônimo. Abaixo o leitor confere a entrevista na íntegra.

Leonardo Bomfim, Juliana Costa e Pedro Henrique Gomes.

12 de dezembro 2018

Pedro Henrique Gomes: no Beira-Mar, assim como no Tinta Bruta, existe uma relação muito forte com o espaço e esse espaço é crucial nos filmes. No primeiro em função da própria geografia do lugar, o litoral gaúcho, a frieza, o céu sempre nublado, e, no segundo, pela forma como a cidade de Porto Alegre é retratada, uma cidade mais escura. Pra começar eu gostaria que comentassem o quanto essa relação é presente na concepção de cinema de vocês desde o início do processo do filme.

Márcio Reolon: o nosso ponto de partida surge de personagens e muito da relação deles com o espaço. No Beira-Mar, por exemplo, muito antes da ideia da história, até porque muitas coisas nós fomos criando enquanto filmávamos, era importante já pensar a relação desses dois meninos numa casa em frente ao mar com a ideia de que nunca vemos o mar, mas ele está sempre presente. Isso para nós sempre foi muito forte, já era um ponto de partida. No Tinta Bruta a mesma coisa. A cidade e a relação do personagem com ela, que ali era muito a nossa relação com Porto Alegre também, vinha muito disso. Isso estava presente no embrião do projeto mesmo antes de ser Tinta Bruta, quando era Quarto Vazio, era um filme sobre isso, por mais que a cidade não aparecesse no filme, pois era um filme totalmente de apartamento, era muito isso de uma pessoa presa a uma cidade em que as pessoas vão embora.

Filipe Matzembacher: desde o início no roteiro já tinha uma ambientação para dar essas características para a cidade. Discutíamos muito a questão de enxergar e materializar Porto Alegre com uma antagonista, talvez nesse sentido ela seja a grande antagonista do filme. No Beira-Mar a cidade está muito presente mas não tem tanto esse papel.

MR: no Beira-Mar o espaço tem toda uma função simbólica para nós. Aquele mar chamando era quase um chamado da idade adulta, entrar no mar era quase um rito de passagem, ou seja, finalmente enfrentar aquela coisa gelada e violenta.

PHG: parece com o final do Tinta Bruta, quando o personagem, com a catarse daquela dança, externaliza aquele sentimento que se mantinha guardado durante todo o filme.

FM: nos interessa muito contar histórias em que um personagem esteja entre grandes eventos da sua vida. Dessa maneira conseguimos focar no interno do personagem, como ele reage após um acontecimento que o marcou. Não nos interessava tanto o que viria depois e sim como esse acontecimento o modificou. Os dois filmes têm muito isso.

Leonardo Bomfim: tem uma questão muito interessante que é o corte final. Ele separa o filme do personagem. Era importante mostrar aquilo que o personagem estava passando, aquele momento. Ele passou por uma experiência muito forte, houve uma transformação. Mas a minha impressão é que, por outro lado, vocês não poderiam trair o filme. Se vocês fizessem um final com ele dançando durante dez minutos o filme teria um desfecho com uma energia totalmente diferente, inclusive em relação à cidade.

FM: esse foi um dos planos em que mais experimentamos.

MR: se deixássemos a dança inteira teríamos um final mais “feel good”, mas o filme não é sobre isso, como se no final tudo fosse ficar bem. Pelo contrário, ele está totalmente na merda em meio aquilo tudo.

FM: para nós era interessante chegar naquele corte brusco pois o filme tem esse registro. A montagem, o som, mesmo a fotografia e a direção de arte trabalham com esse registro bruto nos cortes e na forma como registram os espaços. Não faria muito sentido terminar o filme em êxtase.

LB: mas isso de certa forma cria um mal-estar no espectador.

Juliana Costa: sim, ele frustra pois se torce para o personagem mesmo sabendo que não existe uma solução ou uma redenção, mas é inevitável essa sensação.

LB: muitos filmes fazem isso, encerram com um final redentor.

FM: seria a opção mais segura [colocar toda a dança] se fôssemos pensar em termos de público. Mas com o corte naquele momento percebemos que tem o início de um sentimento de suspensão e depois um retorno. Se tivéssemos deixado por três ou quatro minutos ele dançando o espectador começaria a analisar somente esteticamente a dança, perdendo toda a potência do ato do personagem.

JC: eu acho que o filme é muito maduro e coisa de quem sabe o que está fazendo. Ele é muito determinado, é possível ver o tempo que vocês trabalharam nele, o investimento de pensamento, de cuidado e controle. Como vocês lidaram com essa questão do controle e do improviso, se coube improviso nesse processo e se vocês têm essa vontade do controle do cinema?

MR: uma coisa muito importante para nós foi termos feito o Beira-Mar. Foi um filme que fomos fazendo de forma instintiva, não tínhamos muita pretensão com ele. Não sabíamos nem se ia sair um longa.

FM: a gente brincava dizendo que depois que acabasse poderíamos colocar ele no YouTube.

MR: a gente ia filmando, inventando. Então para nós era muito mais um exercício. Por ele ser tão livre nesse sentido nos possibilitou ver coisas que são importantes pré-definir e coisas que gostamos muito de desenvolver e de deixar aberto ao acaso. Nós tentamos buscar essa dualidade. O Tinta Bruta é um filme muito roteirizado e planejado em muitas coisas, mas mesmo no roteiro deixamos muitos gaps para o improviso, para pensarmos no set como filmar isso e aquilo.

FM: gostamos muito do processo teatral. Ele é muito rico e bonito. Algumas vezes me identifico mais com ele do que com o processo cinematográfico, que é muito vertical e às vezes enxergo essa verticalidade nos filmes de uma maneira negativa. Uma vez que tentamos tornar esse processo mais horizontal e mais longo, boa parte da nossa tarefa desde o início é saber claramente o universo que estamos querendo contar e os motivos pelos quais estamos fazendo o filme. As pessoas que estão ao nosso redor precisam ter vontades parecidas, entender os motivos do filme também e se identificarem com isso. A partir disso elas vão começar a acrescentar coisas ao filme que estão no mesmo universo.

MR: nunca fizemos teste para nenhum filme, tanto que o nosso casting, por exemplo, é muito mais uma questão de gerar uma afinidade, uma comunhão de vontades, do que pra mostrar o quanto se sabe atuar. Se podemos investir em alguma coisa sempre investimos em tempo. Tendo um processo longo nós encontramos essas coisas todas.

FM: quando se tem tudo mais claro na cabeça de todo mundo, quando tu chega no set, se alguém vier com uma ideia nunca vai ser muito… porque o improviso tem esse problema, muitas vezes ele vem pra uma coisa que não tem relação alguma com o filme. Se está todo mundo na mesma página ele pode vir para acrescentar mesmo.

PHG: a sequência final, da forma como vocês a construíram, já estava presente desde o início, no roteiro, ou vocês foram descobrindo ela ao longo do processo:

MR: ela não estava no primeiro tratamento do roteiro, não era exatamente assim. Ele mudou bastante. O golpe [processo que culminou com o impeachment de Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016]  uma coisa determinante na mudança da perspectiva do filme. Ele era muito mais sobre partidas e performances. A violência em si atravessou nesse momento do golpe, foi uma coisa que nos violentou muito.

FM: o Pedro ser essa pessoa reativa foi um ponto muito importante pra nós.

MR: exatamente. O filme terminava de outra forma pois não tinha tanto essa jornada de reação.

PHG: já que vocês entraram no aspecto político, fico pensando no Tinta Bruta não só como um filme político, mas feito politicamente, no sentido de que não precisa ficar nomeando as coisas, elas já estão ali presentes na representação, na violência psicológica e simbólica da cidade. Isso é muito evidente no filme.

FM: isso é uma coisa que nos interessa muito. A gente sempre pensa politicamente o filme desde o início. Mas é uma questão que tomamos muito cuidado nos nossos filmes, não nomear demais as coisas, personificar demais elementos político-sociais que estão no imaginário de todo mundo. No geral o cinema brasileiro faz bastante isso.

MR: pelo bem e pelo mal, mas pra gente não interessa tanto dessa forma a realização.

LB: mas vocês criam os antagonismos no início porque não sabemos muito bem porque aquele julgamento está acontecendo, mas vemos muito bem crucifixos e duas bandeiras: do Brasil e do Rio Grande do Sul. Pra mim fica claro que é isso que está dizendo que ele está errado, que ele cometeu um crime, são esses símbolos.

PHG: fora os fantasmas nas janelas, aquelas silhuetas obscuras.

MR: sim, é um filme que a gente concebe ambientado numa Porto Alegre muito específica, mas ele é um filme sobre um Brasil que a gente está vivendo. Isso está muito conectado. Mas quando a gente trouxe justamente esse processo de golpe pra dentro do Tinta Bruta, essa coisa do ambiente que circunda ele, isso pra nós era o Brasil acontecendo, ou desacontecendo.

JC: mas ao mesmo tempo é muito Porto Alegre. Talvez Porto Alegre tenha se estendido pro Brasil. Sempre foi uma cidade muito pioneira, o berço do conservadorismo. Conservadora e provinciana. Eu acho que o controle das janelas é a cara do provincianismo de Porto Alegre, cidade que é claustrofóbica no sentido de que todo mundo se vê e se controla.

LB: e a própria internet, não só as janelas. Hoje muitos filmes têm a internet como esse espaço virtual como um outro espaço, só que vocês rapidamente já o colocam como um espaço de vigilância e que pode ser opressor.

MR: nos interessa muito tentar complexificar esses espaços. Normalmente, a internet quando entra no cinema é como vilã ou como uma libertação, uma válvula de escape. Os espaços são complexos, o Pedro é um personagem muito complexo. Ele faz muitas coisas que não são legais, não é um personagem ideal. O Léo a mesma coisa. Isso é o interessante, encontrar essas complexidades.

FM: o Pedro tem uma relação com o olhar o tempo todo: ele fura o olho de um colega, têm as pessoas nas janelas olhando ele, tem a internet. Ele tem essa fobia do olhar mas ao mesmo tempo a solução dele, para “sobreviver”, é criar um trabalho em que ele é observado por milhares de pessoas.

JC: é, e isso eu acho que é muito o filme de uma geração, retrato de uma geração na relação com a cidade, com a internet e personagem/vida real. Como esses jovens lidam com isso de uma forma mais livre no sentido de que não é estranho ter um personagem e ser outra coisa ou o inverso. Isso não é uma contradição e inclusive se complementam.

FM: eu acho que foi muito o processo de termos nos debruçado por bastante tempo no roteiro, aí a gente começa a perceber essas questões. O Pedro carrega isso porque nos dedicamos muito no roteiro pra ele, pra entender, pra absorver aonde que estava inserido socialmente, seja na cidade ou na geração a qual ele pertence.

JC: tem algo dessa geração que, ao mesmo tempo em que vai atrás do olhar, ao se expor, renega o olhar, tem uma relação complexa com o olhar do outro.

PHG: ainda no aspecto do olhar, de estar sendo observado, tem a ideia da encenação. Ele tem o controle daquele jogo até certo ponto. Quando o Leo aparece ele embaralha ainda mais a encenação, propondo novos jogos. É um aspecto muito rico no filme.

MR: isso nós pensávamos muito, era uma vontade nossa fazer um filme sobre perfomance. Isso pode ter tanto a ver com o nosso passado como atores, o nosso interesse pela representação, pela atuação, e também tem relação com o queer, a ideia de que estamos sempre performando. Colocar a roupa pra sair de casa é uma perfomance.

LB: eu acho que o filme completa uma trilogia da performance no cinema gaúcho com o Castanha (Davi Pretto, 2014) e o Rifle (Davi Pretto, 2016). Tem uma relação geracional, dessa geração que saiu das universidades mais ou menos no mesmo período, mas é uma relação da performance e do isolamento. Todos têm protagonistas com dificuldades para estabelecerem relações. E nisso é possível até ampliar o arco para o Eles Vieram e Roubaram Sua Alma (Daniel de Bem, 2016) e o Desvios (Pedro Guindani, 2016). É questão que “trai”, digamos, a essência do cinema gaúcho que sempre foi um cinema de turma, de galera. Tanto a geração do Super-8 quanto a do Gustavo Spolidoro, do Fabiano de Souza. Isso era um pouco a marca do cinema gaúcho. Não sei se vocês enxergam essa relação, mas pra mim houve uma mudança no próprio cinema gaúcho.

FM: talvez seja um pouco o reflexo… o cinema é reflexo da política, da sociedade. Se a gente for analisar os anos 1990 e início dos anos 2000, como era a cidade e o Rio Grande do Sul e como está hoje, isso vai refletir no cinema, na forma como se enxerga a sociedade. Teve um debate que alguém falou que o Beira-Mar era um filme otimista. Se a gente fizesse o Beira-Mar hoje não faria sentido, pelo menos pra nós. Teríamos que fazer um filme diferente.

JC: a trilogia da incomunicabilidade do cinema gaúcho…

LB: aí acho que são mais de três filmes.

FM: fico imaginando a efervescência do Ainda Orangotangos (Gustavo Spolidoro, 2007), que é muito resultado anos 1990. Se a gente fosse representar Porto Alegre dessa maneira as pessoas iriam achar estranho.

LB: acho que tem um ponto de corte: a saída do PT e a entrada do PMDB e o momento em que o Júpiter Maçã deixa de ser uma referência e o Vitor Ramil se torna uma referência, por exemplo, você sai de Um Lugar do Caralho pra Estética do Frio.

JC: pensando nas referências, queria que vocês falassem um pouco mais sobre como elas se relacionam com o novo filme.

MR: nos interessava esse cinema queer underground nova-iorquino dos anos 1960/70. Paul Morrissey é um diretor que nos toca bastante.

FM: acho que Flesh (Paul Morrissey, 1968) é um dos filmes que a gente mais viu na vida.

MR: o plano inicial do Tinta Bruta é uma homenagem direta ao plano inicial do Flesh. A Claire Denis é uma cineasta que sempre nos toca. Tem o Ira Sachs também, com o Deixe a Luz Acesa (2012) que é um cineasta que a gente admira bastante. No geral nos interessa cineastas com o olhar voltado ao humano.

MR: Gus Van Sant é um cineasta super importante pra nós, principalmente a fase inicial da carreira. O próprio Garotos de Programa (1992) se relaciona com o Tinta Bruta em muitos pontos.

paranoidpark2FM: lembro que, quando assisti Paranoid Park, pensei: “Foi a primeira vez que eu vi a adolescência no cinema”. Deveria ter o nome desse filme do lado da palavra adolescência no dicionário.

 

FM: O Jia Zhangke, que tem um cinema muito sobre personagens. Derek Jarman a gente assistiu muito durante o processo. Fassbinder, que tem muito essa questão de sociedade e personagem. Ele está discutindo encenação, dramaturgia, e isso nos interessa muito.

MR: tem o Alain Guiraudie. Talvez Um Estranho no Lago (Alain Guiraudie, 2013) seja o meu filme favorito nessa década. O filme tem muito isso de criar o suspense aos poucos, que é algo que a gente flertou também no Tinta Bruta.

JC: tem a relação com a sexualidade, com o desejo… desejo da violência.

LB: essa é uma questão central no cinema contemporâneo, a relação do cinema queer com a violência. Com o Tinta Bruta a impressão é que vocês quiseram fazer um filme ultraviolento.

FM: a violência está presente. O queer nos anos 1906/70 foi muito ligado a uma ideia de criminal queers que nos interessa muito. Com o Tinta Bruta a gente queria ter um pouco disso. O Pedro não é um personagem obediente. Ele é violentado e ele violenta também. Pra gente seria esquisito ignorar toda a violência na qual estamos imbuídos.

MR: o cinema queer muitas vezes dedica muito tempo de tela pra retratar a homofobia, e isso acaba as vezes sendo muito agressivo e nós buscamos evitar isso. Tanto que a gente nunca mostra nenhuma agressão homofóbica. Isso pra gente era importante. O Pedro até apanha dos caras na rua mas é pela vingança por ele ter furado o olho do colega. Isso [a violência, a homofobia] está no personagem, naquele corpo, na cidade, no discurso, mas não queríamos trazer aquele gay bashing que é tão comum no cinema.

FM: isso está ali, não precisa ter ninguém gritando “seu veado” pra que o espectador olhe e identifique [a violência].

MR: isso é uma coisa que nós conversamos durante o casting do filme, que sabíamos que teríamos atores negros, o Bruno [Fernandes, que interpreta o Léo] principalmente. Como a gente tem esse processo longo, discutimos bastante com o elenco, principalmente o que fica mais tempo no processo, tentamos buscar espaço para que eles possam sugerir coisas. Isso a gente abriu pro Bruno e falou: “Olha só, têm pinceladas aqui no roteiro sobre racismo”. O Bruno nos falou uma coisa que pra gente foi muito marcante: “No momento que eu entro em cena, as pessoas já sabem tudo o que eu carrego. No momento em que eu sou um negro e estou ali falando de opressão, as pessoas sabem do que eu estou falando”. Então não precisamos literalizar isso, essas coisas estão impressas naqueles corpos que estão sendo retratados.

PHG: saltando de assunto: se não me engano tanto o Beira-Mar quanto o Tinta Bruta não têm sol. Mesmo nas cenas internas, prevalece a escuridão, aquelas silhuetas, certa estranheza.

JC: o sol está em falta no Brasil.

LB: cineastas vampiros.

FM: bom, eu adoro vampiros.

LB: o próximo filme é de vampiro, então.

FM: não é o próximo, mas a gente tem esse projeto. O Beira-Mar tinha muito o reflexo de querer lembrar da nossa adolescência de ir pra Capão no inverno, com aquele litoral completamente cinza, sem saturação. No Tinta Bruta têm até momentos de sol, por exemplo, na cena com a colega de dança tem um solzinho.

PHG: mas ali é passageiro, o sol passa e daqui a pouco já vai fechar.

FM: é, mas isso muito pra representar o sentimento do Pedro, esse cara que não sai do quarto, um cara pálido. Ao mesmo tempo que não é uma Porto Alegre muito fria, por outro lado é uma cidade sem vida.

Tinta Bruta: entrevista

A Dama na Água vai ao paraíso

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Fui ao cinema esperando um diálogo umbilical com Corpo Fechado e Fragmentado, mas a estreia de Vidro, a nova maravilha de M. Night Shyamalan, retalhou as expectativas e me fez rever tudo o que mais admiro em meu filme favorito do diretor: A Dama na Água. 

Aproveito para resgatar uma versão revisada de um texto antigo sobre um dos inimigos mais malditos da indústria cinematográfica americana, aquela que costuma assassinar reputações quando elas deixam de dar lucro ou começam a revelar, tal como fez o personagem Monsieur Verdoux de Charles Chaplin, mais do que deveriam sobre as fraquezas de seu próprio sistema.

A FANTASIA ENVERGONHADA

A rejeição enorme ao filme diz muito sobre o momento que o cinema popular de Hollywood viveu nos anos 2000. Basta lembrar que a obra é contemporânea à incensada e influente trilogia do Cavaleiro das Trevas de Christopher Nolan. Falava-se muito da verve realista, da tradução do sentimento americano pós-11 de setembro, da Gotham City sombria como a metáfora ideal para a Nova York do século vinte e um; mas pouco sobre o que surgia ao mesmo tempo: super-heróis com vergonha das fantasias (o azul virou cinza; o vermelho, vinho escuro…), a necessidade quase desesperada de estabelecer uma verossimilhança psicológica em personagens de natureza completamente ficcional, uma falta de tato com a inventividade e o senso de humor. Alguns podem argumentar que isso vem da matriz, mas basta pegar O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller, praticamente um Bandido da Luz Vermelha em quadrinhos, para notar que um retrato sombrio de um super-herói não precisa abandonar a irreverência e a imaginação.

Um dos aspectos mais sintomáticos desse período é que quase todas essas trilogias de heróis da primeira década do século levam um longa-metragem inteiro – com mais de duas horas de duração! – para convencer o espectador de que alguém fantasiado vai sair pelas ruas combatendo o crime. Isso é algo que uma história em quadrinhos sempre resolveu em um quadro, em uma imagem apaixonante – e que Shyamalan também resolve em uma cena: o protagonista de A Dama na Água, vale lembrar, também é um frustrado administrador de tragédias pessoais, também tem um passado que pesa; da mesma forma, o contexto americano é esmagador, a Guerra do Iraque está presente, mas tudo isso entra naturalmente dentro da grande fantasia, não precisa formar uma espécie de prelúdio para que a ação enfim aconteça.

Não é estranho, portanto, ver obras que abraçam com gosto o universo dos quadrinhos (o Hulk de Ang Lee, outro maldito da época, mas já podemos até citar os clássicos fora de moda de Richard Donner e Tim Burton), um tanto marginais dentro do status quo do cinema de entretenimento, marcado por heróis e cineastas que no fundo não acreditam na própria fantasia.

E se A Dama na Água foi pintado imediatamente como o patinho mais feio, apesar de ser um dos filmes mais belos (aqui no sentido visual mesmo: das cores, da luz, das composições) do nosso tempo, é porque propõe uma relação com a fantasia que não encontrou eco dentro do império cinzento da indústria hollywoodiana daquela época. Como falar dos Estados Unidos do início do século vinte e um com uma jovem ninfa de outro mundo, uma fera com pelos esverdeados, uma águia gigante e macacos protetores? Ou com uma trupe de personagens que inclui um sujeito que malha apenas um lado do corpo, um caricato crítico de cinema arrogante e amargo, um garoto que encontra a verdade na caixa de cereais? O grande trunfo do filme de Shyamalan, e que diz muito sobre o espírito de sua obra, é que ninguém duvida da existência dessas criaturas (dos seres e dos vizinhos de outro mundo!). E assim uma fantasia alimenta a outra: a aparição da jovem ninfa, a lenda contada pela velha chinesa… Ver para crer, crer para ver. Ou, como poderia ter dito Méliès: no cinema isso é simples como arrancar a própria cabeça.

O pior de tudo é que os cineastas e os heróis macambúzios acabaram gerando outra figura: o espectador dotado de um ceticismo arrogante e de um complexo de épico (aquele da música do Tom Zé), que muitas vezes não admite ver uma obra que toma a fantasia como realidade e brinca com a narrativa de modo livre, bem-humorado, inclusive revelando o prazer da zombaria ao olhar para si. Enquanto o aspecto metalinguístico dos heróis cinzas levam os filmes ao questionamento (e a confirmação messiânica) sobre a necessidade desses seres extraordinários em uma sociedade americana doente (a mesma de A Dama na Água, diga-se), o de Shyamalan remete ao questionamento sobre as regras do jogo da própria história, ao quebra-cabeça em relação ao papel que cada um deve ocupar para que a fantasia siga até o fim. O mundo não precisa da jovem ninfa, o mundo precisa das histórias sobre ela.

O MONSTRO TEM DUAS CABEÇAS 

lady in the water 44M. Night Shyamalan é um tipo cada vez mais raro dentro do cinemão contemporâneo. É o roteirista engenhoso, o rei das reviravoltas que nos obrigam a repensar tudo o que acabamos de ver; mas também é o cineasta genial, seguidor da melhor tradição dos grandes nomes de Hollywood, a de quem consegue, a partir de um movimento de câmera ou de uma composição inventiva ou de uma decupagem sensível (às vezes tudo isso ao mesmo tempo), transformar uma cena aparentemente banal que em palavras não despertaria muita coisa, num momento cinematograficamente maravilhoso (um exemplo: a abertura com a caça às baratas de Paul Giamatti).

O prazer de contar uma história aliado ao prazer de filmar uma história: A Dama na Água é um caso excepcional porque pega um momento de ápice. A certeza do que fazer possibilita uma obra completamente consciente de suas armas, mas que nunca abre mão da invenção e do mistério. Poucos filmes aproximam personagem e espectador de forma tão honesta. Dividimos, ao longo da narrativa, a caça ao tesouro: quem pode ser tal personagem, como deve acontecer a cena, como completar uma história que já está totalmente escrita? Esse mundo descrito, previsto, precisa apenas acontecer. Não é o mesmo trabalho que o cineasta tem diante do roteiro? Quando acontece essa transferência dos prazeres do cinema (da criação com a câmera à criação dentro da sala escura), há sempre um momento arrebatador. Pois entre a farsa e o terror, a história de ninar e a comédia surrealista, num filme justamente sobre a reencenação de uma história, Shyamalan deixa claro que é preciso pensar cada cena como um momento glorioso e não apenas como uma sequência de planos destinados e narrar alguma coisa. E sugere: o espectador também pode pensar assim.

Se quisermos tirar o filme da solidão, portanto, precisamos procurar a companhia da experimentação visual dos últimos filmes de Godard (como sugeriu David Bordwell) ou de um Histórias Extraordinárias (2008) do argentino Mariano Llinás, filme de quatro horas e uma infinidade de narrativas, que chega a promover uma longa e deliciosa digressão sobre um personagem para depois dizer a história é outra e iniciar mais uma (e também deliciosa) narração (não é a mesma coisa que acontece em A Dama na Água após descobrirem que as hipóteses sobre a fábula estão todas equivocadas?). Outra sugestão preciosa de Shyamalan: o espectador também pode errar.

Também podemos aproximá-lo ao cinema de cores e sensações Apichatpong Weerasethakul e vê-lo ao lado de uma obra como Tio Boonmee, que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), em que seres como o fantasma de uma mulher e um homem-macaco convivem com naturalidade com toda a família. O lugar do filme é em outro mapa do cinema, o da necessidade da fabulação para que o mundo possa existir em sua dimensão mais prazerosa.

Alguém já falou: o mundo é aquilo que vemos. Mas se perguntarmos o que é este nós, o que é este ver e o que é esta coisa ou este mundo, penetramos num labirinto de dificuldades e contradições. Há aqueles que reagem a esse pulo de interrogações despertando a pior paranoia possível (quantos heróis dos anos 2000 mereceriam uma sessão de terapia no lugar de um filme?). Há outros, e é o glorioso caso de M. Night Shyamalan, que criam um grande parque de diversões dessa meada cheia de dobras, desconfianças e veredas instigantes. 

 

 

A Dama na Água vai ao paraíso

Amor e morte em Khon Kaen

 

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E os soldados, enfim, acordam. Resultado dos exercícios de meditação ou das máquinas importadas que estimulam os bons sonhos nos doentes do sono? Nenhuma alma esboça urgência por resposta e a vida segue no hospital improvisado na pequena escola em Khon Kaen, esse lugar onde tudo parece provisório e os tempos e os espaços, entre novas ruínas e velhas presenças, convivem vagarosamente.

Pouco depois e na única vez em que a noite cai nesse assombroso Cemitério do Esplendor (2015) de Apichatpong Weerasethakul, acompanhamos o passeio da aposentada que vende meias e ocupa-se com os enfermos, Jenjira, um rosto bem conhecido de outros filmes do tailandês, ao lado de seu soldado particular, Itt. Ela toma o militar despertado como filho e a suave troca de confidências no jantar termina em uma sessão de cinema: o trailer de um filme fantástico com línguas e braços elásticos é instigante, mas nada comparado à tela branca reverenciada durante um bom tempo pelos olhos vidrados dos espectadores [i]. A noite segue e a madrugada é tomada por uma atmosfera estranha, cores saturadas destacam os esvaziados espaços públicos. No hospital, as máquinas anunciam sonhos intensos.

O soldado volta a dormir: Itt é carregado pelas escadas rolantes de um multiplex, no primeiro (e suave) movimento que a câmera decide fazer no filme, seguido por uma fusão também inédita que aproxima a grande escultura cinética do complexo de cinemas à euforia neon da instalação de luzes no hospital. Sobrepostas, essas duas imagens escancaram a potência alucinatória de um filme que até então administrava com serenidade a convivência de tantas imagens e sons dissonantes, entre escavadeiras militares, deusas-fantasmas, monstros marítimos e outras pequenas ranhuras na realidade mansa daquela importante cidade do nordeste tailandês, margeada pelo Rio Mekong e próxima da fronteira com o Laos. O fim da noite nos leva de volta ao hospital: após atravessar alguns vestígios da antiga escola, Jenjira telefona para o marido e suplica baixinho: “sou a única que está acordada”.

Essa coleção de instantes singulares acontece na metade exata de Cemitério do Esplendor,  aquele momento do filme em que Apichatpong tradicionalmente gosta de estraçalhar o aconchego do espectador. O cineasta já havia trabalhado a divisão de uma obra em duas, com os créditos tardios que encerram o mal-estar cotidiano e abrem o portal do paraíso para o amor na floresta de Eternamente Sua (2002), ou a ruptura brusca na película que transforma a paixão tranquila de Mal dos Trópicos (2004) em uma experiência aterrorizante de caça, desejo e possessão. Em Síndromes e um Século (2007) esse tipo de divisão é ainda mais sugestiva: o filme reprisa partes de sua trama em outro contexto; o que era rural e singelo, em situações lacunares também vivenciadas num hospital de Khon Kaen, torna-se um tanto asséptico e (ainda mais) misterioso numa área urbana, numa relação estabelecida a partir de repetições e diferenças das ações do ser humano entre o arcaico e o moderno, o natural e o artificial, o sagrado e o profano.

De um modo diferente das três obras que colocaram o tailandês no mapa do cinema internacional, a metade aqui não anuncia a entrada de um novo filme, a revisão de uma atmosfera e tampouco um jogo de espelhos. A madrugada esquisita em Khon Kaen introduz, apenas, o primeiro momento de consciência de Jenjira sobre a necessidade de despertar. A nova disposição da personagem cristaliza os estranhamentos que já haviam surgido com breves incômodos, da descoberta dos textos enigmáticos do caderno de Itt, à desconfiança com a espionagem da jovem médium que consegue recordar as vidas passadas ou a surpresa preocupada com a aparição das deusas mortas. O que ganha outra vibração após a noite das cores saturadas em Cemitério do Esplendor, todavia, é a percepção de que todo um ambiente aparentemente soberano está sendo diretamente afetado direcionado imobilizado por alguma energia poderosa e invisível.  O espectador não precisa da informação de que o filme foi rodado enquanto havia um toque de recolher imposto pelos militares para sentir a sombra ameaçadora nos retratos dos lugares desertos dessa breve aventura noturna. Há um espaço sob influência.

TODAS AS REALIDADES DO MUNDO

Se não há dois filmes, há dois nomes[ii]. O título internacional, Cemetery of Splendour, remete à trama subterrânea, aos espíritos dos reis que se apoderam da energia dos habitantes do hospital porque precisam continuar suas infinitas batalhas. Inevitável pensar na metáfora política, por mais que o diretor se esquive em entrevistas, pedindo para que a obra não seja reduzida a um instantâneo do momento do país[iii]. O título tailandês, por sua vez, leva o filme à outra dimensão, ao amor em Khon Kaen (Rak Ti Khon Kaen, no original). Impossível, neste caso, não pensar no autorretrato. Para além de narrar a balada onírica de Jenjira num país assaltado por um golpe militar, há o desejo de capturar todos os sinais de vida ainda existentes – animais, vegetais, minerais, humanos, mecânicos, elétricos – no ambiente em que o diretor nasceu e viveu seus anos de educação sentimental.

cemetery-of-splendorEssa simultaneidade entre o terror político e a resistência afetiva é descortinada, de fato, na arrebatadora sequencia que inicia com a denúncia sutil sobre a censura, quando Itt é interrompido pelo sono repentino ao falar pra Jenjira sobre “a ausência de futuro na carreira militar”. O adormecimento imediato do soldado faz com que a garota médium, a possível agente do FBI, tome posse de seu espírito. Surge um convite sedutor, um quer ver o que eu vejo? que promove uma bifurcação radical da realidade: os dois (ou as duas?) passeiam ao mesmo tempo por seus territórios particulares, o palácio suntuoso dos reis ausentes da dimensão de Itt e as recordações da região da velha escola de Jenjira.  Apichatpong dá um nó até naqueles que já haviam decorado todo o seu repertório e dessa vez recusa a representação visível ou sensorial de qualquer mundo sobrenatural: estamos do lado fora, somos as testemunhas distantes e intelectuais de dois corpos que passeiam na floresta e falam de algo que a nossa imaginação vacilante não consegue integralmente completar.

Itt e Jenjira seguem a caminhada e a cada comentário deslumbrado sobre um quarto cheio de espelhos, a cada confissão melancólica sobre o passado, é possível notar o desconforto crescente que revela, aos poucos, a pulsão sexual. O desejo já é flagrante quando vemos o soldado, ainda encarnado no corpo da jovem, dedicar-se a longas lambidas na perna deformada de Jenjira.  Amor em Khon Kaen entre soldado e enfermeira, amor em Khon Kaen entre filho e mãe, amor em Khon Kaen entre duas amigas, não importam as identidades que aqueles corpos representam: ao equilibrar o amour fou e uma veneração terapêutica, Apichatpong realiza aqui uma inesperada ampliação das possibilidades do erotismo no cinema, concluída não com um orgasmo ou com qualquer representação característica de um entusiasmo pornográfico, mas com um choro enorme.

Nessa mesma sequência (é de se perguntar se algum momento do cinema contemporâneo é tão poderoso quanto esse trecho de Cemitério do Esplendor), um pouco antes, Apichatpong nos pede para observar a existência de estátuas quase idênticas: o casal apaixonado e os esqueletos do mesmo par. Se a simbologia original daquela representação sugere algo sobre a eternidade do amor, Apichatpong parece usar as imagens para impedir que a gente esqueça que essa obra segue tendo realidades simultâneas o tempo todo: amor (e morte) em Khon Kaen.

A simultaneidade de todas as dimensões possíveis: Apichatpong coloca no mesmo plano ações (ou fantasmas de ações) que acontecem num hospital, numa escola, num cemitério, num palácio e já explicita, com as escavadeiras ao trabalho, que um novo espaço encarnará ali em breve. Esse entremundos proposto pelo diretor consegue abrigar, portanto, o retrato melancólico da Tailândia como uma bela enfeitiçada e a necessidade de reunir, talvez pela última vez[iv], toda uma comunidade de situações e estados de espírito já registrados anteriormente. A impressão é a de que cada plano marca uma espécie de despedida do universo fabuloso de imagens e sons que o cineasta construiu desde a sua estreia em Objeto Misterioso ao Meio-Dia (2010), um pouco similar ao que Tsai Ming-liang fez, sem a mesma intensidade política, em Adeus, Dragon Inn (2003)[v], e ainda intimamente ligado a ideia de que a relação do cineasta com aquele mundo deverá estar presente em cada segundo e centímetro do fotograma, ou seja, quando o autorretrato tem a ver com uma atitude do olhar e não com o desejo de transformar a câmera num espelho, algo que surpreendentemente o aproxima de outro reino da história do cinema: aos filmes em que John Ford buscou a vida acontecendo em pequenas comunidades[vi].

E se de alguma forma Cemitério do Esplendor tem um ar de pout pourri, de um catálogo de momentos escolhidos, certamente não é porque o cineasta resolveu praticar, após a consagração com a Palma de Ouro de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), a repetição de uma fórmula de sucesso. O reencontro com tantas cenas, com tantos planos, com tantos rostos, com tantos sons, parece vir, na verdade, de uma urgência politicamente desolada de captar o desaparecimento[vii] (ou a morte ou o sono profundo) do próprio universo. A morte (de um mundo) ao trabalho ou um filme-testamento através de tudo.

Mas se Jenjira ainda quer acordar, lembramos que esse também é um filme sobre comunhão. O encontro poderoso e fortuito entre a mulher e o soldado, que só acontece porque o leito do hospital fica no lugar exato em que ela sentava (e dormia) na escola, abre as portas para que se equilibrem, novamente, as dimensões políticas e amorosas. Se no início ela acredita estar vivendo o sonho de Itt, numa linda tradução da sensação do salto em que alguém se apaixona, no fim eles dividem as experiências: compartilham, enfim, os sonhos. Há uma última conversa, entrecortada por olhares tão pacíficos quanto amortecidos.

Jenjira: Eu vi o seu sonho.

Itt: E eu vi o seu.

Jenjira: Por favor, não volte a dormir.

Itt: Sabe por que eles estão cavando?

Jenjira: É um projeto secreto do governo.

Itt: Tão secreto que estão cavando na frente de todos nós.

Jenjira: Eles nos mudarão em breve.

Itt: Eu prefiro dormir aqui.

Jenjira: Você tem razão. É um bom lugar para dormir.

Quem acompanha de perto a obra do tailandês, já ouviu a música eletrônica que anuncia a proximidade do desfecho. Também já foi vista a ginástica coletiva nos espaços públicos, talvez a imagem mais característica de seu cinema, aquela que sempre faz um afago no espectador e imprime a sensação de feel good no fim. Mas Cemitério do Esplendor ainda não acabou. Ao lado das escavações, alguns garotos jogam uma pelada no que restou de um gramado. Em um ligeiro desvio surrealista da imagem anterior, já estamos testemunhando o impossível futebol em meio aos grandes buracos de terra. Se o campo mostra esse jogo duplamente subversivo, no cemitério dos reis e nas escavações dos militares, o contracampo reencontra os olhos abertos e a perturbação de Jenjira. É o assombro absoluto diante da beleza e do horror do mundo, o desejo insistente de Apichatpong nessa redefinição corajosa do filme político e do filme de amor.

 

 

Texto publicado originalmente no segundo semestre de 2016, na edição 27 da Revista Teorema.

Notas.

[i]              O plano dos espectadores diante da tela branca não está presente nas edições internacionais em DVD e blu-ray do filme. Na Tailândia, a lei pede para que o hino do país seja reproduzido antes das sessões de cinema. O silêncio, a tela branca e os espectadores hipnotizados é uma imagem extremamente política e pelo visto foi cautelosamente retirado da versão para home video.

[ii]                Apichatpong costuma usar títulos diferentes para a distribuição internacional, mas nunca marcando referências tão específicas e contrastantes como aqui.

[iii]            Foram onze golpes e sete tentativas na Tailândia desde a reforma política da monarquia, em 1932. Em 2014, os militares tomaram o controle do governo e suspenderam a Constituição, valendo-se do argumento de que era necessário restaurar a ordem no país, tendo como principal argumento as acusações de corrupção na administração do governo eleito democraticamente. Cemitério do Esplendor foi realizado na Tailândia durante esse golpe. No Brasil, estreou no outono de 2016 e tornou-se contemporâneo de outro golpe.

[iv]                Apichatpong já revelou em entrevistas que esse deve ser o seu último filme na Tailândia. Deseja realizar o próximo longa na América Latina.

[v]              O filme de Tsai Ming-liang figura entre os dez “fantasmas” favoritos de Apichatpong, em lista montada para a enquete da revista inglesa Sight & Sound, em 2012. Os outros nove, quase todos com influência bem nítidas em sua filmografia, são: Um Dia Quente de Verão (1991), de Edward Yang; A Conversação (1974), de Francis Ford Coppola; A Prisioneira (2000), de Chantal Akerman; Empire (1964), de Andy Warhol; Nascido Para Matar (1987), de Stanley Kubrick; A General (1926), de Buster Keaton; Rain (1929), de Joris Ivens; Satantango (1994), de Béla Tarr; e Valentin de las Sierras (1967), de Bruce Baillie.

 

[vi]             A lista é grande, mas alguns notáveis: Como Era Verde o Meu Vale (1941), Paixão dos Fortes (1947), Depois do Vendaval (1952), O Sol Brilha na Imensidão (1953).

 

[vii]              Chama atenção a proximidade de Cemitério do Esplendor com outro filme também lançado no Festival de Cannes de 2015, As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, talvez o seu maior “rival” em termos de importância dentro do cinema contemporâneo. O último volume da trilogia de Gomes mostra a Xerazade cansada e questionando o ciclo interminável de histórias: a máquina de narrativas que move o cinema de Gomes e promove essa representação fabular de seu país desde A Cara que Mereces (2004), está enguiçando. Simultaneamente, na Tailândia do Cemitério de Esplendor de Apichatpong, todo um universo que já vimos radiante em outros filmes, agora aparece desencantado.

 

Amor e morte em Khon Kaen