A criação de Hong Sang-soo segue num ritmo alucinante. No anúncio da programação do BAFICI, no início de abril, todo mundo acreditava que nela constavam os dois últimos filmes do coreano: Você e os Seus, lançado em setembro de 2016, e On the Beach at Night Alone, janeiro de 2017. Faltando uma semana para o festival começar, surge a programação de Cannes com outros dois lançamentos, A Câmera de Claire e The Day After. Num intervalo de nove meses, quatro longas lançados. Fica a pergunta: onde Hong Sang-soo vai parar?
Os dois filmes exibidos no BAFICI reencontram o protagonismo feminino de A Visitante Francesa (2011), A Filha de Ninguém (2012) e Nossa Sunhi (2013). Já percebemos logo, com o ponto de vista das mulheres, as situações típicas de seu cinema ganham outra dimensão. Em Você e os Seus, já visto no Brasil em 2016 e comentado no Zinematógrafo, a grande personagem é a mulher que não assume a identidade esperada pelo homem que a reencontra (e a deseja). É como se a Judy, a segunda mulher de Um Corpo que Cai, dissesse não ao homem sedento pela imagem da primeira. A obsessão com o filme de Hitchcock já existe desde Conto de Cinema (2005), mas nas últimas obras Hong Sang-soo parece esmiuçar cada pequeno detalhe da obra máxima do diretor inglês. Ele mostra: cada cena, cada plano, cada ideia que existe ali pode se tornar um outro filme. Em Certo Agora, Errado Antes, a lupa do diretor identifica a singularidade narrativa da obra de Hitchcock com o recomeço abrupto após o suposto suicídio da primeira Madeleine. Entretanto, a “segunda chance” do protagonista, um cineasta coreano, é ainda mais inesperada: o filme simplesmente recomeça com um novo título e novos créditos. Em Você e os Seus, a negativa da mulher faz surgir o curto-circuito, o reencontro não acontece, o filme emperra em longas e bizarras discussões. O coreano aproveita essa premissa para complexificar as relações possíveis entre mulheres e homens, tópico essencial de seu cinema.
Dá pra dizer que o mesmo acontece em On the Beach at Night Alone, certamente a história mais densa que Hong nos deu. Dizem as gargantas do cinema que tudo é reflexo do caso entre o diretor e a atriz principal, a atual musa do cinema coreano, Min-hee Kim, um grande escândalo no país. Fofocas à parte, o filme narra justamente as consequências na vida (profissional e pessoal) de uma atriz que teve um caso extraconjugal com um diretor de cinema mais velho. Ele aparece pouco, mas na única cena, numa mesa de bar, discute a arte dos filmes com ideias que já vimos, várias vezes, em entrevistas de Hong Sang-soo. Pode ser mais uma brincadeira de jogo de espelhos típica do diretor, dessa vez aproveitando uma história pessoal, mas o fato é que nunca em seu cinema a mediocridade dos homens e a insatisfação da mulher ficaram tão evidentes. Com essa ruptura flagrante, o filme acaba orbitando integralmente ao redor da personagem principal, interpretada por uma Min-hee Kim em estado de graça. Não lembro de um filme recente com um trabalho de atriz com tantas nuances, às vezes dentro de uma mesma (e enorme) cena construída sem nenhum corte. O filme é ela.
A experimentação dos filmes anteriores de Hong Sang-soo talvez tenha deixado todo mundo mal-acostumado, à espera de um truque, de uma narrativa que termina e começa de novo, de cartas embaralhadas que impõem a desordem na história de amor, de uma personagem que inventa ser outra, de uma história que pode ter sido um sonho de alguém. O impressionante é que On the Beach at Night Alone tem praticamente todas essas artimanhas sedutoras, mas nada salta aos olhos, nenhum esquema se sobressai aos dramas da personagem. E se tudo está diluído na história, é porque o filme realmente dedica-se aos (e exige muito mais dos) personagens. Um dos efeitos prováveis dessa proximidade entre todos os filmes do diretor (capítulos diferentes de um mesmo universo?), é que aqueles que estão em cena, geralmente interpretados pelos mesmos atores, a cada obra nos dão a impressão de que se conhecem mais. As discussões são mais afiadas, mais absurdas, as mudanças de atmosfera dentro de uma cena são muito mais radicais. Pois Hong sang-soo também parece a cada filme mais íntimo de todas as suas criaturas: dos personagens, da câmera, das estruturas narrativas. Um domínio absoluto, em outras praias, pode ameaçar filmes cansados, previsíveis. Não é o caso. On the Beach at Night Alone talvez seja a obra mais desconcertante do diretor, um filme gigante sobre a solidão com a simplicidade de um pequeno conto invernal. Novamente a pergunta: onde Hong Sang-soo vai parar?