críticas de bolso (1)

0031__c_jean-claude_lother_why_not_productions.jpg

As críticas de bolso são textos pequenos, geralmente de um parágrafo, que cobrem as estreias do mês no fim das edições do Zinematógrafo, fanzine sobre cinema de Porto Alegre. Publico aqui quatro deles: Três Lembranças da Minha Juventude, de Arnaud Desplechin, A Criada, de Park Chan-wook, A Visitante Francesa, de Hong Sang-soo, e Ventos de Agosto, de Gabriel Mascaro.

TRÊS LEMBRANÇAS DA MINHA JUVENTUDE (Arnaud Desplechin, 2015)

Desplechin sabe como seduzir o espectador. Diante de seus filmes, nunca sabemos o que vamos ver, o que exatamente vamos acompanhar da trajetória de seus personagens, ou até mesmo quando surgirá uma elipse violenta. Costurando a memória afetiva de seu personagem eterno Paul Dédalus, aqui um francês que retorna ao seu país após anos no Tadjiquistão, Três Lembranças da Minha Juventude não foge à regra. São três partes construídas de forma bem livre que encontram o ápice no trecho dedicado a Esther, uma jovem dona de si que se torna a cúmplice amorosa do protagonista. Não é de hoje que os franceses respondem ao problema do ser (o “quem você é” é colocado de forma literal aqui) mostrando pessoas que simplesmente vivem. E o que vive esse garoto? Aquilo que já vimos em centenas de filmes: as descobertas, a consciência um tanto dolorosa da passagem pra maturidade, as farras e brigas juvenis, as festinhas, a primeira transa, tudo na virada dos anos 1980 para os 90, período que cada vez mais é representado através de um sentimento nostálgico. Mas existe um outro grande filme aqui que não costumamos ver: quando o romance de formação, o coming of age, torna-se a história de um grande amor não vivido. O “feel good” juvenil, aos poucos, é tomado pelo rancor, pela raiva, pela frustração. O talento absurdo de Desplechin, no fim, está em mostrar que tudo isso – talvez ainda mais tudo isso do que o mergulho romântico dos primeiros tempos – é amor puro. (Zinematógrafo #17 – dezembro, 2015)

A CRIADA (Park Chan-wook, 2016)

Park Chan-wook é um grande manipulador. Não por acaso brincou de Hitchcock em seu filme anterior, a produção americana Segredos de Sangue. Em A Criada, de volta à Coreia do Sul, ele subverte a expectativa do espectador em relação às identidades e intenções de seus personagens com três reviravoltas na mesma história. O que parecia ser um típico cabo de guerra entre patroa e empregada (uma metáfora sobre a relação Japão e Coreia?), com toda a tensão sexual que essas narrativas costumam ter, remetendo a clássicos como O Criado de Losey, Persona de Bergman, ou Performance de Cammell e Roeg, de repente se torna outra coisa. É instigante num primeiro momento, até pela possibilidade de ruptura no registro visual e de encenação dentro do filme (como na bela revisão de estilo na reprise da cena de sexo), mas se o filme ameaça uma aventura de libertação feminina, na prática ele apenas troca o calabouço erótico daquela mansão literária pela punheta inofensiva que investe todas as suas glórias num soft porn lésbico ultrafetichizado, com um desfecho não tão distante daqueles que passam na Band à meia-noite e meia. Sai de cena, então, o promissor retrato da introdução de um erotismo batailleano, ou seja, ligado à perversão, no contexto da modernização coreana nos anos 1930, e surge uma narrativa frouxa que engana abraçar a fuga das amantes, mas na verdade apenas quer encontrar o ponto certo para o famigerado close-up no peitinho. Resumindo: quando Justine vira Emmanuelle. Que proeza! (Zinematógrafo #22 – março, 2017)

A VISITANTE FRANCESA (Hong Sang-soo, 2012)

Existe a tristeza: o jovem salva-vidas não consegue ler o bilhete amoroso que a estrangeira deixou, pois mesmo conhecendo a palavra, não consegue compreender sua letra – porque também existe a linguagem, uma das questões centrais de um filme em que a quase todo momento ninguém fala sua língua de origem. Mas também existem as narrativas: aqui três que se encontram, se misturam, como se nada de muito extraordinário estivesse acontecendo – e todas são roteiros esboçados por uma jovem abalada com um caso de polícia envolvendo seu tio – o que talvez explique o fato de que os homens sul-coreanos, neste filme, sejam todos vulgares ou apalermados, mesmo quando têm intenções perigosas. Mas há, acima de tudo, Isabelle Huppert, que escolheu Hong Sang-soo a dedo para viver três mulheres ao mesmo tempo em que vive uma. Mais do que a grande obra-prima do cineasta, é a confirmação de que hoje o melhor do cinema está em suas mãos. (Zinematógrafo #3 – junho, 2013)

VENTOS DE AGOSTO (Gabriel Mascaro, 2014)

Gabriel Mascaro causou certo alvoroço entre a crítica com seu último documentário, o Doméstica, ao abrir mão daquilo que pra muitos é o essencial do cinema: o ato de filmar, ou seja, de olhar o mundo. Deixou a responsabilidade das imagens com os personagens, colocando em curto-circuito – sem muito jeito pra coisa – algumas estruturas sólidas da arte dos filmes (quem é e o que faz um cineasta? por exemplo). Já em Ventos de Agosto, ficção lançada com alguma pompa no Festival de Locarno deste ano, as coisas estão mais claras: há um mundo, o vilarejo de pescadores, artesãos e jovens amantes, e o olhar de Mascaro, com uma serenidade distanciada que segue rigorosamente a cartilha de um cinema contemporâneo parido no início dos anos 2000. Podem comemorar os mais tradicionalistas? Nem tanto. Porque a presença do cineasta não garante nada. E é justamente o olhar de Mascaro que enfraquece o que pode ser potente em seu filme – e há muita coisa, as dissonâncias e o tesão do casal, o dia a dia naquela comunidade, o acento absurdo da trama. Ventos de Agosto, apesar das promessas do cartaz (certamente o mais belo do ano), é um filme frio – não por acaso as melhores cenas são aquelas em que o protagonista tem a companhia de um cadáver. Aos poucos fica claro que o distanciamento na verdade é apenas um desinteresse legitimado pelo habeas corpus da estética contemporânea. Porque o essencial do cinema, essa arte demoníaca, não é o simples ato de olhar o mundo, mas o que se consegue roubar dele. (Zinematógrafo # 12 – dezembro, 2014)

críticas de bolso (1)