E os soldados, enfim, acordam. Resultado dos exercícios de meditação ou das máquinas importadas que estimulam os bons sonhos nos doentes do sono? Nenhuma alma esboça urgência por resposta e a vida segue no hospital improvisado na pequena escola em Khon Kaen, esse lugar onde tudo parece provisório e os tempos e os espaços, entre novas ruínas e velhas presenças, convivem vagarosamente.
Pouco depois e na única vez em que a noite cai nesse assombroso Cemitério do Esplendor (2015) de Apichatpong Weerasethakul, acompanhamos o passeio da aposentada que vende meias e ocupa-se com os enfermos, Jenjira, um rosto bem conhecido de outros filmes do tailandês, ao lado de seu soldado particular, Itt. Ela toma o militar despertado como filho e a suave troca de confidências no jantar termina em uma sessão de cinema: o trailer de um filme fantástico com línguas e braços elásticos é instigante, mas nada comparado à tela branca reverenciada durante um bom tempo pelos olhos vidrados dos espectadores [i]. A noite segue e a madrugada é tomada por uma atmosfera estranha, cores saturadas destacam os esvaziados espaços públicos. No hospital, as máquinas anunciam sonhos intensos.
O soldado volta a dormir: Itt é carregado pelas escadas rolantes de um multiplex, no primeiro (e suave) movimento que a câmera decide fazer no filme, seguido por uma fusão também inédita que aproxima a grande escultura cinética do complexo de cinemas à euforia neon da instalação de luzes no hospital. Sobrepostas, essas duas imagens escancaram a potência alucinatória de um filme que até então administrava com serenidade a convivência de tantas imagens e sons dissonantes, entre escavadeiras militares, deusas-fantasmas, monstros marítimos e outras pequenas ranhuras na realidade mansa daquela importante cidade do nordeste tailandês, margeada pelo Rio Mekong e próxima da fronteira com o Laos. O fim da noite nos leva de volta ao hospital: após atravessar alguns vestígios da antiga escola, Jenjira telefona para o marido e suplica baixinho: “sou a única que está acordada”.
Essa coleção de instantes singulares acontece na metade exata de Cemitério do Esplendor, aquele momento do filme em que Apichatpong tradicionalmente gosta de estraçalhar o aconchego do espectador. O cineasta já havia trabalhado a divisão de uma obra em duas, com os créditos tardios que encerram o mal-estar cotidiano e abrem o portal do paraíso para o amor na floresta de Eternamente Sua (2002), ou a ruptura brusca na película que transforma a paixão tranquila de Mal dos Trópicos (2004) em uma experiência aterrorizante de caça, desejo e possessão. Em Síndromes e um Século (2007) esse tipo de divisão é ainda mais sugestiva: o filme reprisa partes de sua trama em outro contexto; o que era rural e singelo, em situações lacunares também vivenciadas num hospital de Khon Kaen, torna-se um tanto asséptico e (ainda mais) misterioso numa área urbana, numa relação estabelecida a partir de repetições e diferenças das ações do ser humano entre o arcaico e o moderno, o natural e o artificial, o sagrado e o profano.
De um modo diferente das três obras que colocaram o tailandês no mapa do cinema internacional, a metade aqui não anuncia a entrada de um novo filme, a revisão de uma atmosfera e tampouco um jogo de espelhos. A madrugada esquisita em Khon Kaen introduz, apenas, o primeiro momento de consciência de Jenjira sobre a necessidade de despertar. A nova disposição da personagem cristaliza os estranhamentos que já haviam surgido com breves incômodos, da descoberta dos textos enigmáticos do caderno de Itt, à desconfiança com a espionagem da jovem médium que consegue recordar as vidas passadas ou a surpresa preocupada com a aparição das deusas mortas. O que ganha outra vibração após a noite das cores saturadas em Cemitério do Esplendor, todavia, é a percepção de que todo um ambiente aparentemente soberano está sendo diretamente afetado direcionado imobilizado por alguma energia poderosa e invisível. O espectador não precisa da informação de que o filme foi rodado enquanto havia um toque de recolher imposto pelos militares para sentir a sombra ameaçadora nos retratos dos lugares desertos dessa breve aventura noturna. Há um espaço sob influência.
TODAS AS REALIDADES DO MUNDO
Se não há dois filmes, há dois nomes[ii]. O título internacional, Cemetery of Splendour, remete à trama subterrânea, aos espíritos dos reis que se apoderam da energia dos habitantes do hospital porque precisam continuar suas infinitas batalhas. Inevitável pensar na metáfora política, por mais que o diretor se esquive em entrevistas, pedindo para que a obra não seja reduzida a um instantâneo do momento do país[iii]. O título tailandês, por sua vez, leva o filme à outra dimensão, ao amor em Khon Kaen (Rak Ti Khon Kaen, no original). Impossível, neste caso, não pensar no autorretrato. Para além de narrar a balada onírica de Jenjira num país assaltado por um golpe militar, há o desejo de capturar todos os sinais de vida ainda existentes – animais, vegetais, minerais, humanos, mecânicos, elétricos – no ambiente em que o diretor nasceu e viveu seus anos de educação sentimental.
Essa simultaneidade entre o terror político e a resistência afetiva é descortinada, de fato, na arrebatadora sequencia que inicia com a denúncia sutil sobre a censura, quando Itt é interrompido pelo sono repentino ao falar pra Jenjira sobre “a ausência de futuro na carreira militar”. O adormecimento imediato do soldado faz com que a garota médium, a possível agente do FBI, tome posse de seu espírito. Surge um convite sedutor, um quer ver o que eu vejo? que promove uma bifurcação radical da realidade: os dois (ou as duas?) passeiam ao mesmo tempo por seus territórios particulares, o palácio suntuoso dos reis ausentes da dimensão de Itt e as recordações da região da velha escola de Jenjira. Apichatpong dá um nó até naqueles que já haviam decorado todo o seu repertório e dessa vez recusa a representação visível ou sensorial de qualquer mundo sobrenatural: estamos do lado fora, somos as testemunhas distantes e intelectuais de dois corpos que passeiam na floresta e falam de algo que a nossa imaginação vacilante não consegue integralmente completar.
Itt e Jenjira seguem a caminhada e a cada comentário deslumbrado sobre um quarto cheio de espelhos, a cada confissão melancólica sobre o passado, é possível notar o desconforto crescente que revela, aos poucos, a pulsão sexual. O desejo já é flagrante quando vemos o soldado, ainda encarnado no corpo da jovem, dedicar-se a longas lambidas na perna deformada de Jenjira. Amor em Khon Kaen entre soldado e enfermeira, amor em Khon Kaen entre filho e mãe, amor em Khon Kaen entre duas amigas, não importam as identidades que aqueles corpos representam: ao equilibrar o amour fou e uma veneração terapêutica, Apichatpong realiza aqui uma inesperada ampliação das possibilidades do erotismo no cinema, concluída não com um orgasmo ou com qualquer representação característica de um entusiasmo pornográfico, mas com um choro enorme.
Nessa mesma sequência (é de se perguntar se algum momento do cinema contemporâneo é tão poderoso quanto esse trecho de Cemitério do Esplendor), um pouco antes, Apichatpong nos pede para observar a existência de estátuas quase idênticas: o casal apaixonado e os esqueletos do mesmo par. Se a simbologia original daquela representação sugere algo sobre a eternidade do amor, Apichatpong parece usar as imagens para impedir que a gente esqueça que essa obra segue tendo realidades simultâneas o tempo todo: amor (e morte) em Khon Kaen.
A simultaneidade de todas as dimensões possíveis: Apichatpong coloca no mesmo plano ações (ou fantasmas de ações) que acontecem num hospital, numa escola, num cemitério, num palácio e já explicita, com as escavadeiras ao trabalho, que um novo espaço encarnará ali em breve. Esse entremundos proposto pelo diretor consegue abrigar, portanto, o retrato melancólico da Tailândia como uma bela enfeitiçada e a necessidade de reunir, talvez pela última vez[iv], toda uma comunidade de situações e estados de espírito já registrados anteriormente. A impressão é a de que cada plano marca uma espécie de despedida do universo fabuloso de imagens e sons que o cineasta construiu desde a sua estreia em Objeto Misterioso ao Meio-Dia (2010), um pouco similar ao que Tsai Ming-liang fez, sem a mesma intensidade política, em Adeus, Dragon Inn (2003)[v], e ainda intimamente ligado a ideia de que a relação do cineasta com aquele mundo deverá estar presente em cada segundo e centímetro do fotograma, ou seja, quando o autorretrato tem a ver com uma atitude do olhar e não com o desejo de transformar a câmera num espelho, algo que surpreendentemente o aproxima de outro reino da história do cinema: aos filmes em que John Ford buscou a vida acontecendo em pequenas comunidades[vi].
E se de alguma forma Cemitério do Esplendor tem um ar de pout pourri, de um catálogo de momentos escolhidos, certamente não é porque o cineasta resolveu praticar, após a consagração com a Palma de Ouro de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), a repetição de uma fórmula de sucesso. O reencontro com tantas cenas, com tantos planos, com tantos rostos, com tantos sons, parece vir, na verdade, de uma urgência politicamente desolada de captar o desaparecimento[vii] (ou a morte ou o sono profundo) do próprio universo. A morte (de um mundo) ao trabalho ou um filme-testamento através de tudo.
Mas se Jenjira ainda quer acordar, lembramos que esse também é um filme sobre comunhão. O encontro poderoso e fortuito entre a mulher e o soldado, que só acontece porque o leito do hospital fica no lugar exato em que ela sentava (e dormia) na escola, abre as portas para que se equilibrem, novamente, as dimensões políticas e amorosas. Se no início ela acredita estar vivendo o sonho de Itt, numa linda tradução da sensação do salto em que alguém se apaixona, no fim eles dividem as experiências: compartilham, enfim, os sonhos. Há uma última conversa, entrecortada por olhares tão pacíficos quanto amortecidos.
Jenjira: Eu vi o seu sonho.
Itt: E eu vi o seu.
Jenjira: Por favor, não volte a dormir.
Itt: Sabe por que eles estão cavando?
Jenjira: É um projeto secreto do governo.
Itt: Tão secreto que estão cavando na frente de todos nós.
Jenjira: Eles nos mudarão em breve.
Itt: Eu prefiro dormir aqui.
Jenjira: Você tem razão. É um bom lugar para dormir.
Quem acompanha de perto a obra do tailandês, já ouviu a música eletrônica que anuncia a proximidade do desfecho. Também já foi vista a ginástica coletiva nos espaços públicos, talvez a imagem mais característica de seu cinema, aquela que sempre faz um afago no espectador e imprime a sensação de feel good no fim. Mas Cemitério do Esplendor ainda não acabou. Ao lado das escavações, alguns garotos jogam uma pelada no que restou de um gramado. Em um ligeiro desvio surrealista da imagem anterior, já estamos testemunhando o impossível futebol em meio aos grandes buracos de terra. Se o campo mostra esse jogo duplamente subversivo, no cemitério dos reis e nas escavações dos militares, o contracampo reencontra os olhos abertos e a perturbação de Jenjira. É o assombro absoluto diante da beleza e do horror do mundo, o desejo insistente de Apichatpong nessa redefinição corajosa do filme político e do filme de amor.
Texto publicado originalmente no segundo semestre de 2016, na edição 27 da Revista Teorema.
Notas.
[i] O plano dos espectadores diante da tela branca não está presente nas edições internacionais em DVD e blu-ray do filme. Na Tailândia, a lei pede para que o hino do país seja reproduzido antes das sessões de cinema. O silêncio, a tela branca e os espectadores hipnotizados é uma imagem extremamente política e pelo visto foi cautelosamente retirado da versão para home video.
[ii] Apichatpong costuma usar títulos diferentes para a distribuição internacional, mas nunca marcando referências tão específicas e contrastantes como aqui.
[iii] Foram onze golpes e sete tentativas na Tailândia desde a reforma política da monarquia, em 1932. Em 2014, os militares tomaram o controle do governo e suspenderam a Constituição, valendo-se do argumento de que era necessário restaurar a ordem no país, tendo como principal argumento as acusações de corrupção na administração do governo eleito democraticamente. Cemitério do Esplendor foi realizado na Tailândia durante esse golpe. No Brasil, estreou no outono de 2016 e tornou-se contemporâneo de outro golpe.
[iv] Apichatpong já revelou em entrevistas que esse deve ser o seu último filme na Tailândia. Deseja realizar o próximo longa na América Latina.
[v] O filme de Tsai Ming-liang figura entre os dez “fantasmas” favoritos de Apichatpong, em lista montada para a enquete da revista inglesa Sight & Sound, em 2012. Os outros nove, quase todos com influência bem nítidas em sua filmografia, são: Um Dia Quente de Verão (1991), de Edward Yang; A Conversação (1974), de Francis Ford Coppola; A Prisioneira (2000), de Chantal Akerman; Empire (1964), de Andy Warhol; Nascido Para Matar (1987), de Stanley Kubrick; A General (1926), de Buster Keaton; Rain (1929), de Joris Ivens; Satantango (1994), de Béla Tarr; e Valentin de las Sierras (1967), de Bruce Baillie.
[vi] A lista é grande, mas alguns notáveis: Como Era Verde o Meu Vale (1941), Paixão dos Fortes (1947), Depois do Vendaval (1952), O Sol Brilha na Imensidão (1953).
[vii] Chama atenção a proximidade de Cemitério do Esplendor com outro filme também lançado no Festival de Cannes de 2015, As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, talvez o seu maior “rival” em termos de importância dentro do cinema contemporâneo. O último volume da trilogia de Gomes mostra a Xerazade cansada e questionando o ciclo interminável de histórias: a máquina de narrativas que move o cinema de Gomes e promove essa representação fabular de seu país desde A Cara que Mereces (2004), está enguiçando. Simultaneamente, na Tailândia do Cemitério de Esplendor de Apichatpong, todo um universo que já vimos radiante em outros filmes, agora aparece desencantado.